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14 dezembro 2016

RESERVA EXTRATIVISTA CHICO MENDES: CONQUISTA E LEGALIDADE*

Silvana Maria Lessa de Souza**

A Reserva Extrativista Chico Mendes é resultado da luta dos seringueiros na década de 90 contra o desmatamento da Amazônia. A permanência da floresta era a garantia dos seus direitos à terra e a manutenção da sua cultura. Em 12 de março de 1990, o então presidente da Republica José Sarney concedeu aos extrativistas o direito à terra assinando o Decreto de Criação da Reserva Extrativista Chico Mendes, a qual compreende uma área de 970.570 hectares distribuída nos municípios de Rio Branco, Brasileia, Capixaba, Epitaciolândia, Sena Madureira e Assis Brasil no Estado do Acre.

A partir de então, se iniciou um longo processo para consolidar a gestão desse território, criado como um modelo de reforma agrária diferenciado, respeitando as antigas tradições. Trata-se de um direito assegurado pela Constituição Federal de 1988 no art. 225: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para a presente e as futuras gerações”.

No entanto, apenas a criação da unidade não era a solução de todos os problemas. Era necessário um arcabouço legal para definir instrumentos e mecanismos para gestão das áreas protegidas. Em 18 de julho de 2000 surgiu a Lei Nº de 9.985, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que garantiu a criação e gestão das áreas protegidas.

A criação do SNUC representou um avanço importante ao efetivar o sistema de áreas protegidas no país, assegurando a representatividade de porções significativas e ecologicamente viáveis das diferentes populações, habitats e ecossistemas do território nacional e das águas jurisdicionais, preservando o patrimônio biológico existente no Brasil.

A reserva Extrativista Chico Mendes corresponde em todos os aspectos este direito constitucional salvaguardado pelo SNUC. Ou seja, sua criação não foi um instrumento politico partidário, na verdade sua criação simboliza uma mudança na gestão do território, reconhecendo as especificidades dos habitats e dos povos por eles ocupados.

A Reserva Extrativista Chico Mendes tem como estrutura de gestão o Conselho Deliberativo, instância máxima que é constituído na sua maioria pelas famílias extrativistas que estão representadas no conselho por 5 cinco associações comunitárias, pelos sindicatos dos trabalhadores rurais dos 7 municípios de sua abrangência, pelas prefeituras e também pelo Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS).

Os beneficiários da Reserva são aquelas famílias herdeiros do processo de luta que resultou na criação da unidade, ou seja, aqueles que na sua criação residiam na terra. Como toda sociedade precisa de uma estrutura organizativa, esta área possui regras sobre o que se pode ou não fazer com objetivo de manter a integridade dos seus beneficiários e do patrimônio natural existente.

Quando falamos de regras, falamos do Plano de Utilização da unidade estabelecido de forma participativa pelas famílias beneficiárias. O plano compreende as formas tradicionais do uso do território, definindo o que pode ou não se fazer, e também as punições para aqueles que desrespeitam as regras.

Uma das regras bastante discutida e polêmica é a criação de animais de grande porte (como bovinos). O Plano não proíbe a criação de animais (gado), estabelece o tamanho da área para o desenvolvimento da atividade. Afinal, na cultura tradicional extrativista o gado era criado em pequena escala. Outro exemplo clássico é a descrição dos tamanhos das unidades familiares. Seguindo a tradição, o plano estabelece que as colocações devem ter no mínimo 2 estradas de seringa, o equivalente a 200 hectares.

Quem pode morar na Resex?

Aquele que estava na Reserva no ato da sua criação, seus herdeiros e sucessores continuaram a morar na unidade. Quem não pode morar lá? – Os que não são extrativistas, não são beneficiários da criação da unidade. No entanto, ao longo dos anos, com a entrada de pessoas sem perfil, como servidores públicos, comerciantes, aposentados do serviço público, pecuaristas e muitos outros exemplos, alguns problemas se instalaram no interior da unidade.

Há, inclusive, situações de pessoas que no ato de criação da unidade foram indenizados, no entanto, permaneceram indevidamente na área adquirindo ilegalmente mais terras. É proibido comprar, vender, arrendar, repassar, alugar ou fazer comércio de qualquer natureza com terras ou áreas de assentamento da reforma agrária, pois as Resex que são áreas federais. Este tipo de comércio é crime e pode levar à prisão.

Segundo o censo realizado em 2009 pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes da Biodiversidade), na Resex em referência vivem 1876 familiais, entretanto, considera-se que esse número é maior, de 2000, pois houve famílias que por diferentes situações ficaram sem responder o cadastro.

A reserva é um grande território com uma população de aproximadamente 10 mil pessoas e gerir este território não é uma tarefa fácil. Cabe ao ICMBio realizar a gestão do território. Ou seja, promover o diálogo em todas as esferas sociais, econômicas e ambientais com objetivo de articular em prol da melhoria da qualidade de vida das familiais residentes; e proteger os recursos naturais da importante floresta, principalmente as castanheiras responsáveis pela produção de 40% da castanha produzida pelo Estado do Acre.

Cabe também ao órgão, com apoio das Associações comunitárias, realizar o monitoramento do Plano de Utilização, saber ou não se este instrumento esta sendo respeitado pelos seus usuários. As penalidades para os crimes ambientais estão amplamente embasados na Lei de Crimes Ambientais, Lei 9.605/98 e Decreto 6.514/08 que a regulamenta, instrumento que subsidia os autos de infração.

Violações

Os cidadãos extrativistas estão tendo seus direitos violados pelos pecuaristas, que, quando não se instalam no interior da unidade, incentivam o desmatamento a partir do arrendamento de áreas para pastagem, negociadas por proprietários que criam de mil a duas mil cabeças de gado. Estamos tratando de aspectos legais que precisam ser respeitados. Precisamos construir políticas que permitam que todos os cidadãos brasileiros tenham acesso aos seus direitos, sejam eles extrativistas, comerciantes, pecuaristas, pescadores, sem distinção.

A Resex é uma área de uso dos extrativistas que pertence a união com direito de usufruto exclusivo. Infelizmente as regras e legislação constituídas para proteger as áreas em toda a sua essência, não são respeitadas e desagradam muito gente.

Os problemas enfrentados na unidade são muitos, mas o principal desafio é construir uma informação correta da realidade da Resex, para utilizá-la como referência de desenvolvimento social e ambiental. Para isso é necessário manter políticas públicas que valorizem os cidadãos e seu território, reconhecendo seus direitos, deveres e suas especificidades. É preciso um instrumento que traga para o debate a verdadeira missão da floresta, defendida em todas as esferas governativas, no esforço coletivo para entendermos qual o melhor caminho. Afinal esta imensa área de floresta tem um grande valor social e econômico para o Estado e os municípios de sua abrangência.

Negócio errado

Um dia uma senhora de nome Otília, de 60 anos, procurou ajuda para denunciar uma situação que vivia na sua colocação. Corajosamente, ele denunciou a esposa de um policial civil. A senhora Otília havia trocado sua casa na cidade por 40 hectares de terra no interior da Resex. Além da casa, ela assinou como parte do pagamento algumas notas promissórias e todos os meses o esposo policial passava para receber o dinheiro. A intenção de Otília era viver num lugar tranquilo, longe da vida de cidade. Mas um dia, ela recebeu na sua casa a visita de uma equipe que fazia trabalho de campo e descobriu que sua colônia ficava dentro da Reserva Chico Mendes. Aflita, procurou a esposa do policial para desfazer o negócio, mas sentiu que correria sérios riscos ao insistir. Corajosamente procurou ajuda do escritório do ICMBio, onde compreendeu que a terra que havia comprado pertencia à Reserva Extrativista Chico Mendes.

Este é um exemplo de muitas das estórias vividas pela unidade, é necessário ter muita habilidade para não deixar que algumas pessoas lhe convençam de uma falsa verdade. O caminho é construir um diálogo e trazer para o debate a verdadeira missão da floresta. Afinal esta imensa área de floresta tem um grande valor social e econômico para o Estado e os municípios de sua abrangência. E quem adquiriu o direito de desfrutá-la obedecendo regras.

O censo realizado em 2009 mostra que 90% das famílias extrativista afirmam ser a Reserva Extrativista Chico Mendes o lugar no qual querem continuar a viver.

*Artigo originalmente publicado no jornal Página 20 em 09/12/2016.
* Silvana Lessa é Analista Ambiental e foi chefe da Resex Chico Mendes.