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31 março 2010

EM ESGOTO, BRASIL RURAL É PIOR QUE SUDÃO

Relatório sobre metas da ONU mostra que cobertura no campo não só é menor que nas cidades, como evolui menos desde os anos 1990

PNUD/Ecodebate

Em 16 anos, o Brasil mais do que duplicou a porcentagem de pessoas que moram em domicílio com saneamento adequado na zona rural, e multiplicou por cinco o acesso na zona urbana. Ainda assim, o país precisa acelerar os esforços para cumprir a meta de chegar até 2015 com metade da proporção de pessoas sem esgoto que havia em 1990, como preveem os ODM (Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, mostra o mais recente relatório brasileiro sobre o assunto.

Nessa área, mesmo os indicadores do Brasil urbano são inferiores aos de países como Jamaica, República Dominicana e aos Territórios Palestinos Ocupados. Já o Brasil rural amarga índices africanos — o acesso a saneamento adequado nessas regiões do país é inferior ao registrado entre campesinos de nações imersas em conflitos internos, como Sudão e Afeganistão.

“A falta de soluções adequadas para a coleta e o baixo índice de tratamento dos esgotos domésticos são os principais responsáveis pela poluição dos recursos hídricos no Brasil, problema que se faz sentir de forma mais aguda em municípios densamente povoados de regiões metropolitanas e cidades de grande e médio porte”, afirma o quarto Relatório Nacional de Acompanhamento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, lançado na semana passada pelo governo brasileiro e por agências da ONU.

Nos centros urbanos, a parcela da população sem acesso a rede geral ou fossa séptica passou de 33,9%, em 1992, para 19,5%, em 2008, segundo o estudo. Para cumprir a meta estipulada pela ONU, a porcentagem terá de ser 16,95% até 2015. O padrão atual do Brasil (80,5% de moradores urbanos atendidos por saneamento adequado) é inferior ao das áreas urbanas como as de Territórios Palestinos Ocupados (84%), Jamaica (82%) e Filipinas (81%), e pouco superior às de Irã (80%), Angola (79%) e China (74%), segundo dados das Nações Unidas.

Apesar do aumento da cobertura, o relatório acrescenta que “a falta de uma solução adequada para o esgoto doméstico ainda atinge cerca de 31 milhões de moradores nas cidades”.

No campo, não só a situação é pior como a melhoria tem sido mais lenta. Em 1992, 89,7% da população não tinha acesso adequado a esgoto; em 2008, eram 76,9%. Para cumprir a meta, será necessário reduzir essa proporção para 44,85% nos próximos cinco anos. “A maioria da população do campo ainda possui condições inadequadas no que se refere a esgotamento sanitário”, observa o relatório.

A proporção de 23,1% dos moradores rurais atendidos por saneamento adequado é inferior á da zona rural de Sudão (24%), Nepal (24%), Nigéria (25%), Afeganistão (25%) ou Timor Leste (32%), também de acordo com dados da ONU.

Diferenças regionais

As desigualdades não se dão apenas entre o campo e a cidade, mas também são evidentes entre as regiões brasileiras. Os piores acessos a esgotamento sanitário adequado ocorrem no Norte, Centro-Oeste e Nordeste, mas a situação melhorou consideravelmente nos 16 anos que separam 1992 e 2008.

Mesmo com a evolução no Norte (onde o percentual de pessoas que moram em domicílios urbanos com saneamento adequado passou de 31,5% para 45,2% no período), no Centro-Oeste (de 37,0% para 50,4%), no Nordeste (de 39,9% para 64,2%) e no Sul (de 62,5% para 78,4%), essas regiões ainda estão piores do que o Sudeste do começo dos anos 90 (79,7%). A região mais rica do país chegou ao fim da década atual com 90,6% das pessoas morando em domicílio com saneamento adequado.

Entre as unidades da Federação, a que possui o melhor serviço de esgotamento sanitário é o Distrito Federal, onde 98,2% da população urbana é atendida por rede geral de esgoto ou fossa séptica. No extremo oposto estão Mato Grosso do Sul e Amapá, com 26,8% e 35,6%, respectivamente.

Reportagem da PrimaPagina, PNUD Brasil, publicada pelo EcoDebate, 31/03/2010

30 março 2010

COLLOR E O BLOQUEIO DO DINHEIRO

Vinte anos depois, Collor pede desculpas pelo bloqueio

Por Cezar Motta e Adriana Faria*

"Peço desculpas, as mais sentidas e as mais humildes, aos brasileiros que passaram por constrangimentos, traumas, medos, incertezas e dramas pessoais com o bloqueio do dinheiro. Lamento que tenha acontecido. Hoje, não faria de novo". Assim o senador Fernando Collor (PTB-AL) se manifesta hoje sobre o empréstimo compulsório que deixou apenas 50 mil cruzados novos (equivalente a R$ 6 mil) nas contas correntes, cadernetas de poupança e demais investimentos em 16 de março de 1990, dia posterior à posse do primeiro presidente eleito após o regime militar.

- Mas a minha agenda macroeconômica prevalece até hoje, quebrou tabus como a abertura da economia, a Lei da Informática, as reservas de mercado, as privatizações, o não-calote da dívida externa. Tudo isso era parte do plano de estabilização, mas hoje só falam no bloqueio do dinheiro - lamenta Collor.

O hoje senador, que renunciou à Presidência da República em dezembro de 1992, na reta final do processo de impeachment, garante que sua queda foi "orquestrada pelo grande empresariado", que não aceitou a perda de privilégios, reservas de mercado e não absorveu a competição com produtos estrangeiros decorrente da abertura de mercado.

- Minha queda começou na Avenida Paulista, ainda em 1990, pouco tempo depois da posse - disse Collor, que tem pronto um livro em que conta detalhes de todo o período, com conversas e conspirações, mas que não sabe ainda quando será lançado. Fernando Collor concedeu a seguinte entrevista à Agência Senado e à Rádio Senado:

Em que momento da campanha o senhor sentiu que a vitória era mais do que provável e, a partir daí, começou a montar uma equipe, escolher cada um, elaborar o Plano Brasil Novo, com uma inflação já de 84% ao mês?

Desde a campanha, sabíamos que os problemas na economia que iríamos enfrentar eram de uma magnitude nunca vista no Brasil do século passado. Por isso, pensamos em um plano que aproveitasse os erros e acertos do Plano Cruzado, para ter chances de êxito. Quando a candidatura começou a ganhar musculatura, a ter resposta nas ruas e nas pesquisas e o segundo turno parecia certo, iniciamos então a preparação do programa de governo, que teve a coordenação da economista Zélia Cardoso de Mello.

E como o senhor chegou ao nome da Zélia? Já a conhecia?

Sim, eu a conheci quando eu era governador de Alagoas e ela, assessora do então ministro da Fazenda Dílson Funaro, que a designou para acompanhar o meu governo, o ajuste fiscal e as reformas que fazíamos para equilibrar as contas do estado. Quando o ministro Funaro deixou o governo, a doutora Zélia continuou a trabalhar conosco, eu a contratei, ela formou uma equipe e nos prestou assessoria. Quando, já candidato a presidente, comecei a elaborar meu programa de governo, eu a convidei para coordenar o trabalho.

O senhor já tinha idéia, durante a campanha, do que iria fazer depois de eleito?

Sem dúvida. As contas públicas estavam absolutamente deterioradas, tudo estava indexado em uma ciranda realimentadora da inflação absurda, a dívida externa era insuportável, as reservas em moeda estrangeira estavam zeradas. Mas o pior de tudo era a inflação que impedia qualquer planejamento, tanto de governo quanto da vida das pessoas comuns. Era o pior dos impostos, o elemento mais cruel e concentrador de renda de uma economia, que castiga justamente os mais pobres, que não podem se defender. Esse era o problema mais imediato. Mas a agenda que implantamos permanece até hoje, e permitiu o sucesso do Plano Real dois anos depois. Era tabu, era proibido no país falar em abertura da economia, no fim das reservas de mercado como o da informática.

Diziam que abrir o mercado de informática permitiria que o capital internacional tivesse acesso à nossa inteligência, aos nossos segredos, ao nosso conhecimento.Diziam que a dívida externa não deveria ser paga, porque era ilegítima, fora contraída de forma irregular. Diziam que o Brasil deveria romper com o FMI. Tanto que o nosso programa, em entrevistas e debates, era o oposto dos outros candidatos. Nós já falávamos em estado menos pesado e mais eficiente, em abertura da economia. Os outros candidatos defendiam um estado que resolvesse todos os problemas do país; diziam que a abertura da economia iria quebrar a indústria brasileira, construída para substituir importações. Diziam que a indústria automobilística não poderia competir com os carros importados, iria fechar e provocar desemprego.

O único ponto em comum que todos tínhamos, e era um consenso na sociedade inteira, era a urgência de vencer a inflação. O resto eram falsos dilemas, que foram desmoralizados e não são levados mais a sério, o que demonstra que, há 20 anos, nossa visão estava correta. Infelizmente, não coube a mim estabilizar a economia, mas as bases, a semente do Plano Real foram lançadas com a nossa agenda macroeconômica.

E como se chegou à idéia de bloquear o dinheiro, os ativos financeiros, e como o senhor recebeu a idéia?

Todo presidente aprende com o antecessor, tanto com os erros quanto com os acertos. No Plano Cruzado, vimos que o congelamento de preços foi feito em um momento de liquidez, não excessiva, mas real. E quem tinha dinheiro na ciranda financeira, no overnight, até mesmo quem vivia de salário, correu às compras, para aproveitar os preços congelados. Quem pensava em comprar geladeira, máquina de lavar e televisão nova, em trocar de carro, em consumir mais, correu às lojas. E a indústria, naquele momento, não estava preparada para repor estoques, para atender à demanda. Veio o desabastecimento, as prateleiras ficaram vazias, as pessoas tinham o dinheiro mas não tinham o que comprar. A inflação voltou então forte, uma inflação de demanda.

Quando tomamos posse, havia ainda mais liquidez, o dinheiro aplicado na ciranda financeira se havia decuplicado, o quadro de dinheiro em circulação era incontrolável, e a moeda valia cada vez menos.Vimos então que um dos pressupostos básicos para estancar o processo, era um novo congelamento de preços. Mas não podíamos fazê-lo com todo aquele dinheiro disponível em bancos, em aplicações financeiras.

E aí veio a idéia do bloqueio do dinheiro...

No início, pensamos apenas em bloquear por tempo determinado os títulos ao portador, os títulos da dívida pública, do Tesouro. Mas o mercado, essa coisa intangível, sabe se defender muito bem. Quando então falamos em acabar a inflação com um tiro só, perceberam logo que vinha congelamento. E pensaram: vão congelar, mas não podem incorrer no mesmo erro do Plano Cruzado. Então, o bloqueio do dinheiro será muito mais amplo. E todos começaram a migrar dos investimentos para as contas correntes e para caderneta de poupança, houve até enormes saques em dinheiro. E nós, às vésperas da posse, estávamos monitorando todo esse movimento.

Ainda na campanha, o senhor garantiu que a poupança seria preservada.

Eu nunca afirmei isso. Ao contrário, em um dos debates eu disse que o meu adversário é que iria confiscar as poupanças, justamente para evitar que a pergunta me fosse feita. O fato é que, quando todos da minha equipe viram que as contas correntes e a poupança receberam enormes aportes, concluímos que não bastava bloquear os títulos, não seria suficiente. E posso garantir que todos os candidatos tinham a mesma intenção. O PT, o PMDB. Tanto é verdade que, dois dias depois, economistas e políticos do PT paulista, alguns ex-colegas da ministra Zélia na Universidade de São Paulo (USP), a procuraram e disseram: "Era este exatamente o programa que queríamos aplicar. Só que, no nosso caso, o governo cairia no dia seguinte". Então, todos trabalhavam com essa saída. A grande surpresa foi o volume dos ativos, ninguém esperava tanto. Mas nós precisávamos de um tempo para respirar e dar os passos seguintes, como renegociar a dívida externa; restabelecer a confiança dos credores internacionais, abalada com a moratória de 1987; reiniciar as linhas de crédito; acenar com o programa liberal, mas com preocupações sociais.

E como foi a reação do empresariado brasileiro com a abertura da economia?

A minha queda começou na Avenida Paulista, com a insatisfação dos que perderam suas reservas de mercado, seus privilégios. Mas a indústria brasileira deu um grande salto de produtividade e qualidade depois da abertura da economia. Criamos as câmaras setoriais para analisar cada setor, o que poderia ser feito para lhes garantir competitividade, como enfrentar a competição internacional. Depois da abertura, nossos carros melhoraram, nossos computadores deram um salto de qualidade - a gente tinha uma coisa impensável que chamavam de computador, mas que era três ou quatro gerações atrasada em relação ao que se encontrava em qualquer shopping norte-americano.

Não tínhamos celular, fizemos uma campanha sem qualquer memória em relação a eleições anteriores, coordenar uma logística nacional era uma coisa absurdamente difícil. Hoje, temos celulares, computadores de última geração, ninguém mais pensa em reservas de mercado, ninguém mais tem medo de privatizações, a dívida externa está equacionada, e o início foi ali, no meu governo. Meu negociador da dívida externa foi o embaixador Jório Dauster, que fez um extraordinário trabalho e reabriu as portas para o Brasil.

Voltando a falar do bloqueio de ativos: como se chegou ao valor de 50 mil cruzados novos? Há muita especulação, e chegou-se até a falar em sorteio com papeizinhos, que teria sido na base do improviso...

Decidimos com base na caderneta de poupança. Porque não queríamos atingir o pequeno poupador, o típico aplicador em caderneta, que vive de salário, pensão ou aposentadoria. Tiramos uma média e vimos que 50 mil cruzados novos (NR: o equivalente, na época, a US$ 1.300) era a média dos aplicadores em caderneta de poupança. No entanto, houve uma corrida para a poupança de grandes aplicadores.Hoje, quando se fala no Plano Brasil Novo, fala-se no bloqueio, fala-se em confisco, esquecendo-se de todo o conjunto do plano, e de que o dinheiro foi devolvido 18 meses depois, em 18 parcelas, com juros de 6%, acima do que pagava a poupança.Ao contrário de outros empréstimos compulsórios, como o das viagens ao exterior, no governo Geisel, e o da gasolina, nos anos 80, de que ninguém nunca mais teve notícia, não recebeu o dinheiro de volta e nem sabe quanto perdeu.

E por que deu errado? O impacto do bloqueio do dinheiro teria sido tão grande que levou a população a ficar contra o governo e o plano?

Não, a população não sabotou. Ao contrário, uma pesquisa logo depois do plano mostrou que tínhamos 67% de aprovação. Erramos em uma série de pequenas coisas, que se tornaram grandes. Por exemplo, na administração da liberação do dinheiro no que chamávamos de "torneiras". Todo dia nos deparávamos com uma surpresa. Nossas reservas cambiais eram atacadas no mercado, e nós precisávamos delas. Muitas frentes estavam abertas, mas a grande resistência veio da Avenida Paulista, como disse, dos grandes industriais e empresários brasileiros, que não gostaram de perder suas reservas de mercado. Em nenhum momento tivemos problemas com sindicatos de trabalhadores ou partidos de oposição, embora o PT já fosse uma oposição forte e ativa.

Quem sabotou foram os que queriam manter privilégios, aumentar preços e tarifas, a burocracia, os que se envolviam com a Cacex (Câmara de Comércio Exterior do Banco do Brasil, que estabelecia tarifas de importação e exportação). Enfim, era a mesma gente que me apoiou no segundo turno, que defendia a medidas que adotei. Mas logo percebi que defendiam as medidas em relação ao vizinho, mas não aceitavam que fossem adotadas em relação a eles próprios. Tanto que, quando o então presidente da CUT, Jair Meneguelli, foi ao Palácio falar sobre greves e movimentos contra o plano, eu lhe disse: "Não se preocupe, porque vocês, os trabalhadores, não desestabilizam o governo, mesmo com greves. Quem está realmente causando problemas são os seus patrões, os industriais".

E a perda do apoio congressual, principalmente no Senado?

Só mesmo depois de 1991, quando tomou posse um novo Congresso. Tanto que, em 1990, todas as medidas foram aprovadas no Congresso Nacional e até pelo Judiciário. A perda de apoio no Senado só aconteceu um ano depois, porque eu peguei na posse o Congresso anterior, do cruzado, foi uma eleição solteira para presidente da República. No ano seguinte, em 1990, aí sim, veio a eleição para o Congresso e, em 1991, tomou posse um Congresso Nacional que se defrontou com o desgaste do governo, renovou-se a Câmara dos Deputados e dois terços das cadeiras do Senado. E veio uma oposição forte, ainda sob os efeitos do segundo turno da eleição presidencial e do desgaste do governo com o plano econômico.

O bloqueio do dinheiro provocou dramas pessoais, mexeu com a vida de milhões debrasileiros, havia viúvas que viviam dos rendimentos da poupança, foi traumático. Como o senhor vê hoje de uma perspectiva histórica tudo isso?

Eu peço desculpas, as mais humildes e sentidas desculpas, a todas as pessoas e todas as famílias que sofreram constrangimentos, medos, inseguranças, contrariedades, viveram dramas pessoais, e tenho a dizer que lamento muito que isso tenha acontecido. Acho que, mais tarde, todos devem ter percebido que não tomei aquela medida por gosto, mas porque eu queria salvar o país e a população do flagelo da inflação, esse imposto draconiano que corroia salários. Eu lamento que tenha acontecido, foi um sacrifício muito maior do que eu teria imaginado.

O senhor disse que, na época, era tecnicamente inevitável, e que qualquer que fosse o eleito, faria o mesmo. De novo, com a distância histórica de hoje, faria o mesmo?

Não, é a única coisa que eu não faria de novo. Há instrumentos hoje que permitiriam medidas mais brandas. Se a situação se repetisse, seguramente eu não tomaria a mesma medida, não faria o bloqueio, encontraria fórmula mais criativa, menos traumática.

A gente vê hoje a foto da equipe econômica anunciando o plano econômico, todos muito jovens. Faltou maturidade à equipe, houve erros?

Sem dúvida, faltou maturidade, havia muito voluntarismo, o que leva a erros. Aquele ministério era o do idealismo. Éramos todos jovens, sonhadores, com vontade de fazer o melhor para o país, com vontade de realizar o que sonhávamos nas ruas, quando estudantes, em passeatas, em movimentos, nas universidades, combater o que criticávamos. E essa juventude leva ao voluntarismo, que por sua vez leva a decisões temerárias, a correr riscos. Mas sem essa juventude, não teríamos a coragem de fazer o que fizemos, e que era preciso fazer. O governador Leonel Brizola, gentilmente, em sua posse, disse que "estão tentando derrubar o Collor muito mais por suas qualidades do que por seus defeitos".

Vinte anos depois, o que o senhor pode contar daquele período, daquela crise, que não pôde contar então?

Tudo isso está contado em um livro que repousa docemente em dois disquetes, ainda nem pus em CD. Um livro que comecei a escrever logo depois da minha queda. Eu sei o que vocês querem que eu conte agora, mas não posso fazê-lo. Eventualmente, quando há alguma provocação, alguma informação errada, eu conto o que realmente houve. Recentemente, por exemplo, o Delfim Netto disse que não foi consultado na época do plano por ninguém da equipe. Realmente, ninguém da equipe o procurou, mas ele esteve comigo. Ele desmente e diz que, convenientemente, escolho só testemunhas já mortas. Mas há as esposas que estavam presentes. Este encontro foi na casa do ex-deputado Amaral Neto, e a d. Ângela, mulher dele, estava lá, um final de tarde, com o então deputado Ricardo Fiúza e o senador Roberto Campos. Eu os consultei sobre a situação da economia, e todos foram unânimes: com essa liquidez, nenhum plano anti-inflação dará certo. Disseram que seria decisiva a escolha do presidente do Banco Central. Era preciso um nome capaz, que o mercado respeitasse. Eu mencionei alguns nomes, e quando citei Ibrahim Eris, Delfim vibrou: "extraordinário nome, extraordinário nome, perfeito!". Já Roberto Campos não gostou: "Esse não pode, Delfim, é um fiscalista, seria um erro".

E depois da posse e do plano apresentado?

Logo depois, o Delfim foi ao Planalto, lépido e fagueiro, com aquele cabelo sempre bem penteado, bem barbeado, sorridente, e disse: "genial presidente, genial!! Nem eu com o AI-5 teria condições de fazer isso. Parabéns!" Hoje ele nega o encontro. Mas houve, e dou mais um detalhe da conversa. Ele me perguntou: "Mas esse dinheiro não vai ser devolvido, não é?" E eu respondi: "Sim, vai ser devolvido e com juros". Ele riu e duvidou: "Ah, mas isso eu quero estar vivo pra assistir".Pois o dinheiro foi devolvido e Deus permitiu a ele estar vivo para testemunhar. Ele desmente o encontro, mas explicou que apenas propôs o pagamento em títulos. Ou seja, sem querer, confirmou.

E quando o livro com as histórias dos bastidores da época será lançado?

Não sei ainda. Tenho contado alguns dos episódios aos poucos, à medida que a necessidade se apresenta. Aqui mesmo no Senado contei o episódio do jornalista Roberto Pompeu de Toledo que, uma vez, pediu uma audiência a um ministro do Supremo Tribunal Federal a pretexto de uma entrevista e lhe propôs: ministro, condene o Collor que eu lhe garanto tantas páginas da Veja, além da capa, com o título "O homem que condenou o caçador de marajás", alguma coisa assim. Isso não é coisa que um jornalista faça. E o ministro do Supremo está vivo...

Não sei quando vou lançar o livro, mas é prematuro. Uma vez, em 1993, procurei meu querido amigo Thales Ramalho, então ministro do TCU, homem de grande experiência e sabedoria, infelizmente já falecido, e lhe mostrei o texto. Ele lia e balançava a cabeça... Lia e balançava a cabeça, em negação.Até que me disse: "Presidente, isto é um livro de memórias, coisa que só pode ser lançada por quem, como eu, está na ante-sala da morte. O senhor é jovem, mais cedo ou mais tarde vai retomar sua vida política, não pode fazer isso agora. A maioria dessas pessoas está viva, tem filhos, família, netos, não seria bom."E eu respondi, mas o senhor sabe que tudo o que está aí é verdade, não é? E ele respondeu que sim, e me contou uma passagem, que conto no livro, em que ele foi convidado em 1990 para um jantar com um líder de um setor empresarial de São Paulo. Eu tinha tomado posse havia pouco tempo.O empresário, então, sentou-se à mesa com convidados e disse: vamos então retomar o assunto que iniciamos na semana passada. O doutor Thales perguntou: "Que assunto?" E o empresário: "A queda do Collor, temos que afastá-lo da Presidência". O doutor Thales disse então: "Vocês estão loucos? Acabamos de eleger um presidente da República depois de vinte anos, o país não agüenta mais golpes, vocês querem mergulhar em outra aventura?" Eles, então, esfriaram ali a conversa. Thales disse que nem me contou depois porque achou aquilo um verdadeiro delírio.Mas a minha queda começou a ser tramada na Avenida Paulista ainda em 1990.

Houve mesmo um acordo para que o então senador Fernando Henrique Cardoso assumisse o Itamaraty em 1991?

Sim, sim, fechamos o acordo com o presidente do PSDB, o então deputado Franco Montoro, o partido nos apoiaria no Congresso, o Fernando Henrique seria chanceler e o José Serra seria o ministro da Fazenda. Viajei com tudo acertado, e quando voltei soube que o senador Mário Covas havia vetado tudo, anulado o acordo. Soube ainda de outra tentativa de golpe quando formei uma comissão, coordenada pelo ministro da Justiça, Jarbas Passarinho, para trabalhar a opinião pública em favor do parlamentarismo, no plebiscito de 1993. Por campanha educativa, mostraríamos que o nosso presidencialismo era arcaico, imperfeito, disfuncional. Passarinho, que era presidencialista, me procurou um dia e disse: "presidente, uma comissão de parlamentares está preparando tudo para, uma vez vitorioso no plebiscito, o parlamentarismo seja implantado imediatamente, ainda no seu mandato".

Publicado originalmente na Agência Senado.

VÍCIO EM COMIDAS GORDUROSAS E CALÓRICAS

Estudo mostra que mecanismo molecular responsável por vício em drogas é o mesmo que leva à compulsão por comida gordurosa e calórica. Trabalho foi publicado na Nature Neuroscience

Dependência pesada

Agência FAPESP – O mecanismo molecular que leva indivíduos ao vício em drogas é o mesmo que está por trás da compulsão pela comida, de acordo com um novo estudo realizado por cientistas norte-americanos.

Os resultados fornecem uma explicação científica para algo que é verificado na prática por pacientes obesos há muito tempo: assim como ocorre com a dependência em outras substâncias, largar o vício por comida não saudável é algo extremamente difícil.

A pesquisa, coordenada por Paul Kenny do Instituto de Pesquisa Scripps, na Flórida (Estados Unidos), foi publicada no último domingo (28/3) na edição on-line da revista Nature Neuroscience e em breve será veiculada na versão impressa.

Os resultados do estudo já haviam sido divulgados de forma preliminar em uma reunião da Sociedade de Neurociências, em Chicago, em outubro de 2009. Mas o artigo vai mais longe, demonstrando pela primeira vez com clareza, em modelos animais, que o desenvolvimento da obesidade coincide com a deterioração progressiva do equilíbrio químico em circuitos de recompensa do cérebro.

Conforme esses centros de prazer do cérebro se tornavam cada vez menos sensíveis, os ratos utilizados no experimento desenvolviam rapidamente o hábito de comer compulsivamente, consumindo quantidades maiores de alimentos com altos teores de calorias e gordura, até se tornarem obesos.

As mesmas mudanças ocorreram nos cérebros dos ratos que consumiram grande quantidade de cocaína ou heroína. Os cientistas acreditam que esse mecanismo tem um papel importante no desenvolvimento do uso compulsivo de drogas.

De acordo com Kenny, o estudo, que levou três anos para ser concluído, confirma as propriedades “viciantes” da comida junk – alimentos não saudáveis com muitas calorias e muita gordura.

“Ao contrário do resumo divulgado de forma preliminar, esse novo estudo explica o que ocorre no cérebro desses animais quando eles têm acesso fácil a altos teores de calorias e gordura. A pesquisa apresentou as evidências mais completas e convincentes de que a dependência de drogas e a obesidade têm base nos mesmos mecanismos neurobiológicos subjacentes”, afirmou Kenny.

Segundo ele, os animais continuaram a comer compulsivamente, mesmo quando recebiam choques elétricos. “Isso mostra como eles estavam motivados a consumir o alimento saboroso”, disse.

Os pesquisadores alimentaram os ratos com uma dieta modelada a partir do típico cardápio que contribui para a obesidade humana – com calorias de fácil obtenção e alta gordura –, como salsichas, bacon e cheese-cake. Logo após o início dos experimentos, os animais começaram a comer em grande quantidade.

“Eles procuraram sistematicamente o pior tipo de comida. O resultado é que eles ingeriram o dobro das calorias dos ratos do grupo de controle. Quando removemos a comida junk e tentamos colocá-los em uma dieta mais balanceada, eles simplesmente se recusavam a comer”, disse Kenny.

A modificação na preferência dos ratos em relação à dieta foi tão grande que os animais passaram fome por duas semanas depois que a comida junk foi cortada. Os animais que apresentaram um colapso nos circuitos cerebrais de recompensa foram justamente aqueles que mudaram a dieta mais profundamente, buscando a comida mais saborosa e menos saudável.

“Esses mesmos ratos também foram os que se mantiveram comendo, mesmo quando levavam choques elétricos”, disse o cientista. De acordo com Kenny, o mecanismo do vício é bastante simples. As vias de recompensa no cérebro foram tão superestimuladas que o sistema basicamente começa a ser “ligado” espontaneamente, adaptando-se à nova realidade do vício – seja ele a cocaína ou o bolo de chocolate.

“O corpo se adapta notavelmente bem à mudança. E esse é o problema. Quando o animal superestimula os centros de prazer de seu cérebro com comida altamente saborosa, os sistemas se adaptam a isso, diminuindo sua atividade. No entanto, nesse momento o animal requer constante estimulação pela comida saborosa a fim de evitar a entrada em um estado persistente de recompensa negativa”, explicou.

Depois de mostrar que os ratos obesos tinham, em relação à comida, um comportamento claramente semelhante ao do vício em drogas, Kenny e sua equipe investigaram o mecanismo molecular subjacente que explica a modificação. Eles se concentraram em um receptor específico no cérebro, conhecido por ter um importante papel na vulnerabilidade à dependência química e à obesidade – o receptor de dopamina D2.

Esse receptor responde à dopamina, um neurotransmissor que é liberado no cérebro por experiências de prazer, como comida, sexo ou drogas como a cocaína. No caso do abuso de cocaína, por exemplo, a droga altera o fluxo de dopamina bloqueando sua recuperação, inundando o cérebro e superestimulando os receptores. Isso leva eventualmente a mudanças físicas na maneira como o cérebro responde à droga.

O estudo mostra que o mesmo processo ocorre quando o indivíduo está viciado em comida junk. “Essa descoberta confirma o que muita gente suspeitava: o consumo exagerado de comida muito saborosa é um gatilho para uma resposta neuroadaptativa, semelhante ao vício, nos circuitos de recompensa do cérebro. Isso leva ao desenvolvimento de uma obesidade e à dependência de drogas”, afirmou.

O artigo Dopamine D2 receptors in addiction-like reward dysfunction and compulsive eating in obese rats (doi:10.1038/nn.2519), de Paul Johnson e Paul Kenny e outros, pode ser lido por assinantes da Nature Neuroscience em www.nature.com/neuro.

(Foto: Stanford University)

29 março 2010

'DEPUTADO CALIXTO 2.0', O 'EMBARGADOR GERAL' ACREANO

Evandro Ferreira
Blog Ambiente Acreano

Como um dos únicos parlamentares que denunciam de forma recorrente e implacável licitações suspeitas praticadas na administração pública acreana - Estado e Municípios -, sugerimos que o Deputado Luiz Calixto leia o artigo abaixo e se inspire nas ações práticas do paulista Alan Zaborski (clique aqui para saber mais sobre ele).

Para quem desconhece Zaborski, ele é um cidadão comum que, entre outras façanhas, conseguiu paralisar a licitação do 'Expresso Aeroporto', um projeto de 1,4 bilhão de reais que irá ligar o aeroporto internacional de Guarulhos ao centro de São Paulo. Sua ação forçou a Secretaria de Transportes Metropolitanos de São Paulo a refazer o Edital da referida licitação alegando 'motivos técnicos'.

Zaborski, com base na Constituição Federal e na Lei 8.666, que rege o processo de compras e contratações públicas, solicita o exame prévio de editais - etapa que precede a abertura dos envelopes com as propostas dos concorrentes. E embarga tudo que para ele é suspeito de conter falcatruas. Tem acertado na maioria dos casos.

Como o Deputado Calixto não cansa de publicar no seu blog as pérolas e outras jóias relativas às licitações do Governo do Estado que já foram sacramentadas, não custa nada ao ativo parlamentar tentar, em alguns casos, exterminar o mal pela raiz: bloquear o andamento daqueles certames que ele - mais do que ninguém - sabe são suspeitos ou cujos Editais foram 'elaborados' para garantir que apenas certos concorrentes ganhem as licitações.

Seria um avanço e tanto para Calixto, que, entre outras leis, propôs uma que obrigou o Governo do Estado a criar o Diário Oficial Online. O DOE online facilitou o acesso do público aos atos do Governo e a atuação de Calixto, que não tem que depender de 'amigos' para conseguir cópias de extratos de contratos e outros documentos para embasar suas denúncias.

Na versão atual do deputado, a versão 1.0, ele é muito eficiente em denunciar ao público os absurdos de algumas licitações. Porém em muito poucos casos ele conseguiu ser efetivo e obrigar a administração pública a fazer ou deixar de fazer algo. Um dos melhores exemplos foi o caso da pista de pouso de Marechal Taumaturgo.

Para ser mais efetivo ainda, o Deputado precisa evoluir. Precisa se relançar em uma versão mais avançada, a versão 2.0, onde além de continuar a botar a 'boca no microfone', ele vai mostrar que é capaz de bloquear as espertezas de administradores e empresários que, de forma escancarada, sempre se dão bem nos processos licitatórios.

Se Alan Zaborski, um simples cidadão paulista pode, porque um parlamentar acreano não seria capaz?

Foto: Aleac

O 'EMBARGADOR' GERAL

Alan Zaborski já retardou quase 400 licitações públicas em São Paulo. Seu êxito mostra o absurdo que é nosso sistema delicitações: complexo, burocrático e incapaz de evitar desvios

Por Fabiane Stefano
Revista Exame, 16.03.2010

[Zaborski: "Os editais são muito malfeitos. Alguns têm até erros gramaticais grosseiros". Foto: Germano Lüders]

Alan Zaborski, um paulistano de 36 anos, descendente de poloneses e lituanos, costumava ser um especialista em síntese de fármacos. Formado em química, há três anos abandonou o estudo das moléculas para se dedicar a uma área que, embora igualmente complexa, nada tem a ver com sua especialização: as entrelinhas de editais de licitação. Em pouco tempo, Zaborski, com sua estampa de nerd e mais de 2 metros de altura, virou um per so na gem conhecido - e temido - na administração pública do estado de São Paulo. Seu nome passou a aparecer sistematicamente nos pedidos de exame prévio de editais - etapa que precede a abertura dos envelopes com as propostas dos concorrentes. Ninguém o supera em número de embargos de licitações em órgãos estatais paulistas: desde 2007, so ma quase 400 pedidos de análise. Daí seu apelido nos corredores do governo: o embargador geral. Zaborski questiona todo tipo de licitação - desde a compra de combustível para carros da Secretaria de Saúde até a contratação de serviços de arqueólogos para pesquisas nas escavações do metrô. "Ele tentou parar a maioria das licitações que fizemos em 2009", diz José Luiz Portella, secretário de Transportes Metropolitanos de São Paulo. "É um transtorno, pois, se a licitação atrasa, a conclusão da obra também é postergada."

O embargador, porém, não faz nada de ilegal - ao contrário. A Constituição federal e a Lei no 8.666, que rege o processo de compras e contratações públicas, garantem que qualquer cidadão possa impugnar um edital de licitação se houver indício de irregularidade. A medida foi criada para evitar favorecimentos nas relações entre empresas e governos, mas criou um campo para que tudo seja ques tionado - implicando uma demora adi cional em obras e contratações de serviços. Zaborski se apega a detalhes téc nicos dos processos, normalmente negligenciados pelos funcionários dos ór gãos públicos. "Os editais são muito malfeitos. Têm até erros gramaticais grosseiros", diz ele, que se gaba de ter parado a licitação do Expresso Aeroporto, projeto de 1,4 bilhão de reais para ligar o aeroporto internacional de Guarulhos ao centro de São Paulo. A Secretaria de Transportes Metropolitanos paulista admite apenas que o edital está sendo revisado por razões técnicas.

O CASO DE ZABORSKI É O LADO mais pitoresco de uma indústria de impugnação de licitações. Em São Paulo, há cursos para advogados se aprofundarem nos meandros da legislação. Isso porque se cristalizou a prática de o perdedor de uma licitação pública tentar reverter o resultado na Justiça. Afinal, para entrar na disputa, é preciso investir dinheiro no desenho de uma proposta técnica e financeira - custo que, dependendo do tamanho da obra a ser disputada, pode chegar aos milhões de reais. Por isso, as empresas, que chegam aos certames públicos amparadas por um forte esquema jurídico, não querem perder o didinheiro aplicado. "Todos os editais têm problemas. Quem procurar vai achar algum defeito", diz o advogado Fernando Henrique Cunha, especializado em direito público. Diferentemente de Zaborski, que opera apenas no Tribunal de Contas, a maioria dos advogados opta pela Justiça comum para impedir o desfecho de uma licitação - e conseguem travá-las até por anos.

O cerne dessas complicações reside nos 126 artigos da lei das licitações, que é de 1993. É um emaranhado de artigos tão complexo que abre brecha para o questionamento desde aspectos burocráticos até questões de engenharia. "De um lado, todo mundo pode questionar tudo. De outro, os tribunais de contas e o Ministério Público têm a obrigação de fiscalizar se a denúncia procede. O re sultado é uma quantidade absurda de ações, que tumultua o trabalho desses órgãos", diz o advogado Jonas Lima, ex-assessor da Controladoria Geral da União. No Senado, está parado um projeto de simplificação da lei, mas nem essa proposta de mudança conta com o consenso dos advogados porque a maioria das complicações permaneceria. Ao contrário de outros países, o Brasil optou por uma legislação que prima pelo excessivo controle prévio. Idealmente faz sentido: é melhor pegar um erro antes que ele aconteça. Mas, na prática, as múltiplas e minuciosas exigências legais não têm garantido processos mais lícitos nem impedido a roubalheira - haja vista a enorme quantidade de obras suspeitas de corrupção, superfaturamento e outras irregularidades. O que acaba ocorrendo é apenas o aumento da burocracia, que começa antes de cada obra e continua depois dela, na fase de prestações de contas. No final, essa estrutura arcaica tem apenas dificultado o investimento tanto de governos como de empresas. "Se todas as obras que o Brasil precisa fazer para a Copa e a Olimpíada forem impugnadas, nenhum dos eventos vai acontecer", diz Lima.

A atuação de Zaborski naturalmente passou a chamar a atenção no próprio Tribunal de Contas do Estado. As centenas de processos com intervenção dele aumentaram consideravelmente o trabalho do TCE. Os conselheiros do tribunal já expressam até por escrito sua irritação com a insistência de Zaborski em corrigir pormenores irrelevantes. Em casos assim, um edital pode ficar parado até 45 dias. Mas os conselheiros também reconhecem que muitos argumentos de Zaborski têm fundamento e exigem que os órgãos façam ajustes. Aí, a espera para um edital voltar à rua chega a levar meses - mas o efeito pode ser positivo, por evitar que o processo caminhe com defeitos e seja abortado numa fase mais avançada. No Tribunal de Contas, a grande dúvida é qual a motivação de Zaborski. "Seria importante que a legislação exigisse que quem deseja impugnar um processo revele seus reais interesses", diz o conselheiro Robson Marinho, do TCE paulista. Zaborski entrou para o mundo das licitações na tentativa de resolver uma causa pessoal. Há oito anos, seu pai, Edmundo Zaborski, coronel da Polícia Militar do estado, foi condenado por desvio de dinheiro público numa operação de importação de autopeças de Israel. Para ajudar na defesa do pai, ele começou a destrinchar a complexa legislação de compras públicas. Após a morte de Edmundo, em 2004, atribuiu-se a missão de limpar o nome da família e continuou a pesquisar o tema - diz que, agora, o caso do pai está prestes a ser resolvido. Como num roteiro de filme, Zaborski também decidiu se vingar da Polícia Militar, tornando-se uma espécie de vigia implacável de suas licitações. Só em 2007 entrou com mais de uma centena de representações contra a corporação e a secretaria estadual de Segurança Pública. Desde então, fez voltar atrás dezenas de processos de compras de uniformes e de combustível.

Alguns dirigentes de órgãos e empresas estatais suspeitam que Zaborski estaria agindo em favor de empresas interessadas em protelar os editais de licitação. "Já me acusaram até de ser laranja. Mas os aspectos que eu capto nunca favorecem nenhuma das partes", diz Zaborski. Ele alega que nunca ganhou dinheiro com os pedidos de exame prévio - embora já tenha recebido propostas de remuneração para embargar licitações. "Faço isso por convicção", afirma. Seu talento para escarafunchar os editais, porém, está se convertendo em um negócio. Recentemente, passou a atuar como consultor de empresas que já mantêm contratos com o poder público e enfrentam dificuldades na execução. É um trabalho que, dependendo da complexidade, pode render até 5% do valor do contrato. Também presta consultoria a advogados que procuram brechas nos editais para gerar embargos. Orgulhoso, Zaborski diz que até já deu dicas (sem cobrar) a órgãos públicos que foram alvos de suas impugnações. "A qualidade das licitações já está melhorando", afirma. Sua atuação tem sido tão reconhecida que ele decidiu sanar sua maior limitação: a falta de um diploma de advogado, que o impede de propor novas formas de embargo, como mandados de segurança. Também tem planos de abrir um escritório especializado em contas públicas. "Enquanto não tenho diploma, vou contratar um advogado para assinar as ações", diz. Ainda em 2010, ele pretende iniciar o curso numa faculdade perto de sua casa, na zona leste de São Paulo, onde mora com a mãe. Ou seja, seu potencial de atormentar os burocratas vai aumentar.

27 março 2010

CHICO BUARQUE NÃO GOSTA DE 'RODA VIVA'

...mas os diretores de teatro gostam. O que gera um impasse: como convencer o autor a liberar os direitos para montagens?

Por Mariana Delfini
Revista Bravo

[O ator Rodrigo Santiago, caracterizado como Menino Jesus de Praga, é erguido pelo elenco da primeira montagem de Roda Viva. A encenação causou polêmica, entre outras coisas, pelas provocações religiosas]

Em 2005, a diretora teatral Patrícia Zampiroli estava concluindo o curso de Artes Cênicas na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, a Unirio, e optou por dirigir a peça Roda Viva, de Chico Buarque, em seu trabalho de conclusão de curso. Foi um sucesso: o espetáculo lotou as sessões na universidade durante os dois meses em que ficou em cartaz. Patrícia, assim, foi convidada a levar o trabalho para o circuito profissional, no Teatro Glória, no Rio de Janeiro. Começaram aí suas tribulações. Para estrear a peça comercialmente, ela precisaria da autorização do autor. Entrou em contato com seu escritório. Chico Buarque estava em Paris, mas sua equipe informou Patrícia que, como a peça estava montada, era só esperar que ele provavelmente liberaria. No retorno, no entanto, Chico não autorizou. Patrícia insistiu, o que só aumentou a animosidade: "Chico ficou chateado, porque a gente insistiu muito, com abaixo-assinados, indo à TV. Disse que liberaria outras peças, se nós quiséssemos, mas não Roda Viva".

Neste ano, outro diretor deve percorrer o mesmo calvário. O paulista Heron Coelho, que já montou outras duas peças de Chico Buarque - Gota D'Água, em 2006, e Calabar, em 2008 - quer agora levar Roda Viva aos palcos. Para a montagem imaginada para este ano, já tem elenco na cabeça e o plano de construí-la na mesma linha de seus trabalhos anteriores: no formato "breviário", usando teatro de arena e música ao vivo. "Eu vou sofrer. Vou ter que vender o carro e o piano, porque preciso de dinheiro para alugar lugar para ensaiar, comprar equipamento, pagar os atores", diz ele. Sua estratégia é montar o espetáculo por conta própria, gravar em DVD e enviar uma cópia a Chico Buarque. Acha que, diante do esforço do diretor e da trupe, o coração do autor talvez amoleça. Mas Heron avisa: "Não vou insistir. Se ele não deixar, acato de primeira". As perspectivas não parecem muito boas. Contatado por BRAVO! para comentar o assunto, Chico Buarque não respondeu, mas sua assessoria de imprensa disse que o autor não pretende afrouxar o veto: "Ele considera que o texto não merece ser remontado por suas deficiências dramáticas".

Roda Viva é um espetáculo que entrou para a história do teatro brasileiro mais pelo alvoroço que provocou, na época da estreia, do que pelo texto em si. Em 1967, o diretor José Celso Martinez Corrêa havia revolucionado a cena nacional com O Rei da Vela, peça do modernista Oswald de Andrade escrita em 1933 e nunca levada ao palco antes. A montagem carregava nas tintas esquerdistas em voga na época. Mas não foi por isso que entrou para a história, e sim pelo virtuosismo técnico do diretor - que fez seus atores satirizarem, no palco, diversas linguagens cênicas, da revista à ópera. Depois de O Rei da Vela, todo mundo queria saber qual seria o próximo passo de Zé Celso. E ele retirou da manga um curinga inesperado, um texto escrito por um jovem titã da canção popular que satirizava justamente a fabricação de ídolos musicais: Chico Buarque.

A peça se tornou um "hype" a partir dos ensaios no Rio de Janeiro, que duraram apenas quinze dias e viraram parada obrigatória para as celebridades da época. Entre elas, o roqueiro Mick Jagger, que estava de passagem pelo Rio de Janeiro antes de se refestelar no sol baiano de Itapuã com sua namorada Marianne Faithfull, e de Miriam Makeba, a cantora sul-africana que apresentava seu sucesso Pata Pata em um especial da TV Record na mesma época. "O público ia ver, os ensaios foram a sensação do verão", lembra Zé Celso. A estreia aconteceu no dia 15 de janeiro, no Teatro Princesa Isabel. "Foi um sucesso estrondoso", diz o diretor.

Roda Viva tinha vários dos elementos que mais tarde se tornariam típicos do estilo de encenação de Zé Celso. O cenário do artista plástico Flávio Império colocava o teatro dentro de um estúdio de televisão, decorado com um São Jorge gigantesco e uma enorme réplica de uma garrafa de Coca-Cola. A atriz Zezé Motta, que fazia sua estreia nos palcos depois de um curso na escola Tablado ("eu era tímida, insegura e virgem", lembra ela), usava na primeira cena uma malha cor da pele, que trazia o logotipo do inseticida Detefon. Ela vinha caminhando desde o fundo do palco junto com atores que representavam outros produtos, falando "Compre! Compre!", em volume cada vez mais alto. Ao chegar na primeira fila, os atores agarravam os espectadores pelos ombros e os sacudiam. Esse recurso de fazer a plateia participar à força- que mais tarde se tornaria uma assinatura de Zé Celso - deu o que falar. É mencionado em várias das reportagens escritas na época.

As mesmas reportagens comentam - abstendo-se às vezes de descrever, por pudor - as cenas de alusão sexual não tão velada, algumas delas blasfemas. Numa delas, a atriz Marieta Severo representava Nossa Senhora de biquíni. Ela rebolava diante de uma câmera de televisão, cuja lente se expandia e contraía. Em outro trecho, um fígado cru de boi era despedaçado e devorado pelo coro, deixando gotas de sangue respingarem na roupa dos espectadores. Alguns iam embora no meio da peça. Outros gostavam, aplaudiam, e até voltavam - mas tomavam o cuidado de mudar de cadeira caso decidissem passar pela experiência novamente.

"TODOS NÓS SABEMOS QUE EXISTE O COITO"

Pouco a pouco, em meio ao grande sucesso, a peça passou a despertar reações adversas. "Todos nós sabemos que existe o coito. Não é necessário repeti-lo com tantos pormenores e realismo num palco", protestou a deputada Conceição da Costa Neves, vice-presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo, que integrava o time dos opositores. O mal-estar ecoou nos meios políticos. "É uma verdadeira afronta à nossa sociedade e à nossa família", bradou o deputado paulista Wadih Helu, um baluarte conservador que mais tarde faria fama como cartola do Corinthians. "Isso não pode em nenhuma parte do mundo, nem na selva africana, ser chamado de arte. Aquilo é ofensa, aquilo é despudor, aquilo é destruir uma família na sua moral, amolecer uma nação. Aquilo que lá está é um bordel, e não um palco", discursou na Assembleia Legislativa de São Paulo o deputado Aurélio Campos, que havia sido ator de teatro no passado.

As reações contra a peça culminariam em dois episódios de puro vandalismo. Depois de meses de sucesso no Rio de Janeiro, o espetáculo estreou em São Paulo em maio, no teatro Ruth Escobar. No dia 18 de julho, um grupo de baderneiros de direita que se auto-denominava CCC - Comando de Caça aos Comunistas - invadiu a sala ao término do espetáculo armado com cassetetes, facas, soco-inglês e bombas de gás lacrimogêneo, agrendindo os atores e obrigando-os a fugir. O outro episódio de violência ocorreria em outubro, na escala seguinte da turnê, em Porto Alegre. Foi logo no dia 4, o seguinte à estreia da peça. As paredes do teatro apareceram pichadas mensagens como "Fora, agitadores", "Abaixo a pornografia" e "Comunistas". Decidido a ir embora, o elenco foi surpreendido por homens armados, e o músico Zelão e a atriz Beth Gasper foram sequestrados e abandonados em um matagal. No dia 5, os atores embarcaram em ônibus de volta para São Paulo. A peça foi censurada logo depois, e nunca mais seria encenada no circuito profissional.

Roda Viva foi vítima de um espírito de época. Uma época estranha, em que direita e esquerda ainda não haviam conquistado o civilizado espaço da democracia para esgrimir suas teses - algo que felizmente acontece hoje - e se digladiavam de maneira tosca, apelando para o recurso dos pouco inteligentes: a violência. De um lado, o Partido Comunista do Brasil e outras forças autoritárias de esquerda pregavam e praticavam a luta armada — a qual não foi uma reação contra a ditadura, pois começou a ser preparada antes de 1964, ainda em tempos de democracia. De outro, uma ditadura que, como todo regime autoritário, perseguia os opositores com violência - e indiretamente encorajava grupelhos como o CCC, que barbarizavam por conta própria. Foi um tempo que não deixou saudade, em que guerreávamos uns contra os outros, como se fôssemos talibãs. Nesse caldo de intolerância, o mundo artístico, que precisa de liberdade e espaço de debate civilizado para florescer, sempre acaba sofrendo. Aconteceu no Brasil dos anos 60, como no Chile de Pinochet e na Cuba de Fidel, mais ou menos na mesma época .

Para além das provocações e da criatividade exuberante de Zé Celso, o texto tem um enredo simples e carrega algo da ingenuidade política da época. Seu protagonista é o fictício Benedito Silva, com sua trajetória ascendente no mundo do show business. Benedito conta com a ajuda de um empresário, Anjo, que emprega fórmulas mirabolantes. Ele muda o nome do cantor para Ben Silver, e mais tarde para Benedito Lampião - embalagem com a qual se tornaria um produto de exportação. Chega um momento em que o protagonista é levado a se suicidar para se tornar mártir do povo. Resignado com seu destino, depois das devidas despedidas, atira-se em frente a um carro. Rei morto, rainha posta: sua mulher Juliana é quem assume o papel de ídolo, alimentando a roda-viva do que nos anos 60 se costumava chamar de "indústria cultural".

BAIXO CALÃO NO PASQUIM

A resistência de Chico Buarque em liberar Roda Viva para encenação provavelmente não se deve apenas ao fato de o texto ter elementos datados. Existem também reais deficiências de construção dramatúrgica. Para o crítico e pesquisador de teatro Kil Abreu, é possível que Chico Buarque não tolere novas montagens de sua primeira peça justamente por considerá-la uma obra juvenil. "O texto tenta equilibrar a individualidade, na questão do artista que precisa se rebatizar para ser assimilado, e o social, abordando os temas da época de crítica ao consumismo e à televisão", diz ele. "Mas esses temas não são tão bem trabalhados como em Gota D'Água, e a estrutura fica desigual", completa. Segundo Kil, os personagens são também carentes de complexidade. Chico Buarque tem opinião parecida há muito tempo. Em entrevista dada ao jornal carioca Pasquim, em 1975, ele disparou, sem policiar o calão: "Roda Viva, antes que você fale, eu digo: 'É uma merda'".

Os diretores Zé Celso, Heron Coelho e Patrícia Zampiroli não concordam. Eles acham que Roda Viva ainda tem o que dizer nos tempos atuais e também acreditam na qualidade do texto. Existe no Brasil jurisprudência de peça rejeitada, nesse nível, pelo próprio autor? Há casos de excesso de zelo, mas não radicais a esse ponto. O crítico Kil Abreu lembra-se que o paraibano Ariano Suassuna faz uma supervisão rigorosa de seus textos, acompanhando de perto cada montagem. A jornalista Gabriela Mellão se recorda apenas de autores que reescreveram suas peças de juventude, como Plínio Marcos. O veto depois de uma primeira montagem, ao que parece, é situação inédita. E os apelos continuam: "Eu acho que o Chico devia fazer um exame de percepção. Ele, que lutou contra a censura, está censurando sua própria peça. Libera, Chico!", diz Zé Celso, que pede que sua fala seja endereçada como um pedido ao autor.

26 março 2010

EUCLIDES DA CUNHA NO ACRE

O capítulo acreano na vida de Euclides da Cunha

“Alimento, há dias, o sonho de uma viagem ao Acre”
Euclides da Cunha
em carta a Luiz Cruls, em 1903.

Isaac Melo
Editor do Blog 'Alma Acreana'

Em dezembro de 1904, em plena selva amazônica, iniciava-se uma expedição não menos digna de uma epopeia. A frente dela estava o prosador de Os Sertões, a comandar a Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus, numa viagem que se estendeu até novembro de 1905. O olhar aguçado, a pena pertinaz e a visão plenamente humana de Euclides da Cunha resultariam numa das páginas mais abrilhantadas das letras amazônicas, que até hoje impressiona pela sagacidade e força telúrica.

A assinatura do Tratado de Petrópolis, em novembro de 1903, põe fim, em parte, o conflito que se estendera desde 1898 pela posse das terras então ocupadas por brasileiros, o Acre, restabelecendo assim a paz entre os seringueiros acreanos e os bolivianos. Todavia, um outro impasse surgia. O governo do Peru reivindicava grandes áreas no Alto Purus e Alto Juruá, inclusive estimulava a ocupação do território, mesmo que tardiamente.

Depois de discussões diplomáticas entre esses países resolveu-se criar uma comissão mista que iria percorrer todo o Purus para reconhecimento da região e a partir daí delimitar as respectivas fronteiras. O governo brasileiro, por meio do Barão de Rio Branco, nomeou Euclides da Cunha para integrar e chefiar a comissão; por sua vez, o governo peruano nomeou Pedro Buenaño, um sujeito não muito cortês com os brasileiros e que passou toda a viagem a provocar Euclides. Ao todo integravam a Comissão 14 brasileiros (ao término 9 apenas) e aproximadamente 21 peruanos.

Os ardis do caminho fizeram da expedição uma espécie de epopeia moderna. Além de suportar as provocações de Buenaño que se faziam constantes, Euclides e sua equipe enfrentaram um naufrágio, fez grande parte da viagem doente, tiveram que arrastar dias por dias as ubás com as quais tiveram que transpor mais de 74 cachoeiras, e por fim, dias de caminhada mata adentro. Soma-se a isso, o iminente perigo de a qualquer momento ser atacados por índios que habitavam aquela região.

A expedição se saíra perfeitamente bem. Sobretudo, graças aos esforços e inteligência de seu chefe. Como resultado, o Departamento do Alto Acre não sofreu diminuição alguma, os do Alto Purus e Alto Juruá perderam apenas as zonas meridionais, sem prejuízo nenhum para o Acre, uma vez que nunca, de fato, ocupou essas áreas.

Pode-se dizer que o mais interessante em uma viagem não é a partida nem a chegada, mas o seu ínterim. Durante a expedição Euclides absorveu-se à paisagem, para produzir as páginas talvez mais sugestivas e originais que se tenha escrito sobre a Amazônia, como assinala Leandro Tocantins. Seus olhos arregalados contemplam e entendem melhor a paisagem que se vai desenrolando como se fosse uma gigantesca tela de cinema operado em câmera lenta.

Tantos exploradores e cientistas já haviam galgado aquelas paragens, mas só ele, nas palavras de Tocantins, podia ver e interpretar aqueles furos, aquela flora, aqueles rios, aquelas ilhas, aquelas águas, aqueles lagos, de forma até então desconhecida na Literatura. Ele via e pressentia coisas fora da órbita do homem comum.

Ao olhar para o homem que ali se instalou, Euclides diz que este “é ainda um intruso impertinente” numa selva em que desaparecem as formas topográficas mais associadas à existência humana. Todavia, esse inferno verde que parecia para sempre impenetrável, ver insurgir em seu seio uma sociedade de caboclos titânicos no desejo “civilizador” de constância e continuidade da cultura. As gentes que a povoam, assinala Euclides, talham-se-lhe pela braveza. Não a cultivam, aformoseando-a: domam-na.

E, numa visão de homem que está além do seu tempo e de sua cultura, afirma que os sertanejos nortistas, em geral, ali estacionam, cumprindo, sem o saberem, uma das maiores empresas destes tempos. Estão amansando o deserto. Ali, diz ele, se cria uma nova sorte de exilados (o exilado que pede exílio). E denuncia o sistema de escravidão que se implantara: o seringueiro realiza uma tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se. E verifica-se que não é o clima que é mau, é o homem, pois ali ele criou a mais imperfeita organização do trabalho que foi capaz o egoísmo humano.

Para Euclides, o povoamento do Acre foi um caso histórico inteiramente fortuito, fora da diretriz do nosso progresso, em que faltou desde o princípio acompanhar não só a marcha lenta e progressiva das migrações seguras, como os mais ordinários resguardos administrativos. E responsabiliza o Governo Federal, cuja única preocupação dos poderes públicos consistia em libertá-las quanto antes daquelas invasões de bárbaros moribundos que infestavam o Brasil, isto é, livrar dos grandes e importantes centros urbanos os flagelados das secas. E para isso, abarrotavam-se, às carreiras, os vapores, com aqueles fardos agitantes consignados à morte para a Amazônia.

Todavia, aqueles que haviam sido expatriados dentro da própria pátria com a missão dolorossíma e única de desaparecerem, não desapareceram. Ao contrário, acentua Euclides, em menos de trinta anos, o Estado que era uma vaga expressão geográfica, um deserto empantanado, a estirar-se, sem lindes, para o sudoeste, definiu-se de chofre, avantajando-se aos primeiros pontos do nosso desenvolvimento econômico.

Segundo Euclides, realizou-se no Acre a chamada “seleção telúrica”, isto é, a selva só concedeu o direito da existência aos que lhe afeiçoaram. Isso cheira a darwinismo e com razão. Em todas as latitudes, acentua ele, foi sempre gravíssima nos seus primórdios, a afinidade eletiva entre terra e o homem. Por isso, a cada deslize fisiológico ou moral antepõe-se o corretivo da reação física: a eliminação generalizada dos incompetentes.

Por fim, Euclides se volta para o ser humano que para ali se trasladou: os homens são admiráveis. Vimo-los de perto, conversamo-los. Guardamos-lhes os nomes e apelidos bizarros. O clima aí exerceu uma função superior na formação desse homem, pois exercitou uma fiscalização incorrutível, libertando o território de calamidades e desmandos, que seriam muito maiores e piores do que aqueles que por lá ainda se fizeram sentir por muitos anos. Esse clima, diz Euclides, eliminou e elimina os incapazes, pela fuga ou pela morte. E arremata, e é por certo um clima admirável o que prepara as paragens novas para os fortes, para os perseverantes e para os bons.

Legendas das Fotografias (conforme dispostas ao longo do texto)

1. Euclides num grupo a caminho do Alto Purus com dedicatória aos familiares, 1905

2. Flotilha da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus. Reprod. de Euclides da Cunha, O Rio Purus, RJ, SPVEA, 1960. Arquivo Histórico do Itamaraty.

3. Batelão Manoel Urbano antes de afundar (com nota de Euclides da Cunha). Reprod. de Euclides da Cunha, O Rio Purus, RJ, SPVEA, 1960. Arquivo Histórico do Itamaraty.

4. Euclides saltando de uma canoa, com a cabeça protegida dos piuns por um capuz improvisado, 1905. Reprod. de Leandro Tocantins, Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido, Rio de Janeiro, Record, 1968.

5. Euclides em banquete com os peruanos, oferecido na casa comercial de C. Sharf. Curanja, [03 jul. 1905]. Euclides está sentado ao lado do chefe da comissão peruana, Pedro Alejandro Buenaño, que está na cabeceira da mesa. A data, 03. jul. 1905, foi extraída de um trecho não oficial do relatório, escrito pelo próprio Euclides. Entretanto, no “Diário da Marcha”, escrito sob a sua supervisão, está registrada a data de 30 de junho de 1905, tendo o almoço sido servido às 11 horas. O escrevente do “Diário” tinha liberdade de expressão, mas Euclides corrigia alguns deslizes à margem]. Reprod. de Leandro Tocantins, Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido. Rio de Janeiro: Record, 1968. Acervo da Mapoteca do Itamaraty.

6. Barracão Liberdade, no Alto Purus. Reprod. de Euclides da Cunha, O Rio Purus, RJ, SPVEA, 1960. Arquivo Histórico do Itamaraty.


Fonte das imagens: site Euclides das Cunha. O site é excelente, completo!

Referências para aprofundar:


Cunha, Euclides da. À Margem da História. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Tocantins, Leandro. Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

MEMBRO DO CNJ PROPÕE AMPLIAR PUNIÇÃO A JUÍZES

Conselho aposenta ex-presidente do TJ-MT. Toda a família do juiz recebia do tribunal

Blog do Frederico Vasconcelos
Folha Online

O conselheiro Felipe Locke Cavalcanti, do Conselho Nacional de Justiça, está propondo ao órgão que se manifeste publicamente sobre a necessidade de mudança da pena máxima admitida atualmente para juízes: a aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço.

O assunto foi levantado durante julgamento que decidiu pela aposentadoria do desembargador José Jurandir Lima, ex-presidente do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJ-MT). Na sessão plenária desta terça-feira (23/3), o magistrado foi punido com a aposentadoria compulsória, decisão tomada por unanimidade.

Dada a gravidade dos fatos atribuídos a José Jurandir Lima, Locke Cavalcanti afirmou que o ex-presidente do tribunal do MT deveria ser punido com a demissão, punição ainda não prevista na ordem jurídica. A assessoria de imprensa do CNJ informa que o conselheiro Milton Nobre, presidente da Comissão Institucional e de Comunicação, deverá encaminhar o assunto à apreciação do presidente do Conselho, ministro Gilmar Mendes.

O ex-presidente do Tribunal do Mato Grosso foi acusado de utilizar de sua condição funcional "para proveitos pessoais em atitude incompatível com a moralidade e o decoro da magistratura", ao empregar dois filhos em seu gabinete, em cargos em comissão, sem que eles prestassem serviços ao Tribunal.

O processo administrativo foi aberto a partir de um inquérito criminal que o desembargador respondia no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Embora a denúncia inicial fosse uma referência a dois filhos do magistrado, toda a família recebia rendimentos pelo TJ-MT. Também estavam lotados no gabinete do desembargador sua esposa e um terceiro filho.

"Está claro que o desembargador utilizou recursos públicos para custear os estudos dos filhos", disse o conselheiro Walter Nunes. "É o típico caso do uso do cargo em benefício da família, numa clara caracterização de infração disciplinar", lembrou o conselheiro Jose Adônis. Já para o conselheiro Jorge Hélio, "em cinco anos de gestão o CNJ está exercendo uma assepsia que se faz necessária desde a época de Cabral".

O conselheiro Milton Nobre vai encaminhar o processo ao Ministério Público Federal para eventual ressarcimento ao erário.

25 março 2010

DIAS DE CAMPO NO CHANDLESS

Reunião de trabalho - planejamento dos dias que virão. Foram aproximadamente 15 dias de viagem. Antoneli (camisa branca) e Jesus (autor da foto) foram a razão do sucesso da viagem.











Encontro casual - equipes de fauna (2 pessoas) e flora (3 pessoas). A primeira está deixando a área, a segunda está chegando. Elas não podem trabalhar juntas na floresta por que o pessoal das plantas faz muito barulho. O da fauna anda calado, pisando macio, para não espantar os ariscos animais selvagens.










A mais rara, bela e elusiva palmeira acreana: Wendlandiella gracilis. O fato de não ter sido encontrada com frutos a exclui da próxima edição do livro 'Palmeiras do Brasil', que, se nada der errado, irá para a gráfica na segunda que vem.

24 março 2010

ELEIÇÕES: DESIGUALDADES E DOIS TURNOS ATRAEM MAIS CANDIDATOS

Por Nilbberth Silva
Agência USP de Notícias

Em Bálsamo (SP) apenas uma pessoa se candidatou a prefeito em 2008. Já em São Paulo, o número chegou a doze, segundo o Superior Tribunal Eleitoral (STE). Uma pesquisa da USP tenta explicar essa diferenças. Os resultados iniciais mostram que eleições com dois turnos tendem a atrair maior número de candidatos. Mas essa influência só se faz sentir quando as cidades têm desigualdade de renda suficientemente alta.

A pesquisa mostrou que a existência de segundo turno só tende a atrair candidatos em cidades com índice de Gini acima de uma faixa entre 0,5 e 0,6. O Coeficiente de Gini, desenvolvido pelo matemático italiano Corrado Gini, é um parâmetro usado para medir a desigualdade de distribuição de renda entre os países. Na pesquisa, foi considerado um medidor da heterogeneidade de grupos socais que há em uma cidade. O índice de Gini varia de 0 a 1 — quanto mais próximo de 1, pior a distribuição de renda. O índice do Brasil em 2006, por exemplo, era de 0,56, segundo dados do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). Significa que cerca de 10% dos habitantes do País detinham 75% da renda.

Para chegar ao resultado, os economistas analisaram as relações entre dados como a quantidade de candidatos, existência ou não de segundo turno e o índice de Gini de municípios brasileiros. Eles compararam as eleições antes e depois de 1988, quando o segundo turno se tornou obrigatório para cidades com mais de 200 mil eleitores.

“Esse é um efeito médio”, explica Mauro Rodrigues, professor da FEA e um dos autores do trabalho. “Com as ferramentas estatísticas que usamos, não dá para prever para cada município”.

Segundo Rodrigues, teorias dão duas razões para candidatos serem atraídos pela existência de dois turnos: alguns procuram ganhar notoriedade concorrendo até o final e outros esperam trocar o apoio de seus eleitores por influência na gestão do apoiado. Já a heterogeneidade social atrai candidatos porque quanto mais grupos sociais houver em uma cidade, mais candidatos serão necessários para representá-los.

Confirmando pesquisas
Análises estrangeiras já apontavam que o número de candidatos é influenciado pela existência ou não de segundo turno e pelo número de grupos sociais diferentes do eleitorado. Essas pesquisas, feitas com dados de eleições presidenciais de diversos países do mundo, receberam críticas porque em muitos desses países uma grande diversidade de grupos sociais pode ter influenciado a população a escolher os dois turnos. Na hora de analisar os dados, não seria possível separar os dois fatores.

Mas no Brasil, o segundo turno é estabelecido por lei e não por opção do eleitorado. “A nossa pesquisa supera a crítica, por que não há possibilidade de um fator ter influenciado o outro”, explica Rodrigues.

A pesquisa não explica se a relação entre os dois fatores é boa ou ruim para a democracia do País. “Não fazemos esse juízo de valor”, diz Rodrigues. “É fora da nossa alçada”. Interessados podem ler o artigo com resultados preliminares no site do pesquisador.

23 março 2010

Mozart's Requiem Mass - Lacrimosa

A palmeira 'bacaba' ou 'bacaba-de-caranaí' (Oenocarpus balickii Kahn) nativa do Acre

Notas histórico-taxonômicas sobre a 'outra' bacaba acreana

Evandro Ferreira
Blog Ambiente Acreano

A palmeira retratada nas fotos deste artigo, cientificamente conhecida como Oenocarpus balickii Kahn, é conhecida em Cruzeiro do Sul e regiões adjacentes como 'bacaba' ou 'bacaba-de-caranaí'.

Vale ressaltar que no Acre existe outra palmeira nativa, que ocorre em todo o Estado, também conhecida como bacaba. Seu nome científico é Oenocarpus mapora H. Karsten, e dos seus frutos é que se faz o 'vinho de bacaba'. É uma espécie muito comum, conhecida também como bacabinha, sendo inclusive cultivada como ornamental ou frutífera nas cidades acreanas.

A bacaba-de-caranaí, que considero de rara ocorrência no Acre, foi descrita cientificamente a partir de amostras botânicas coletadas em 1989 na estação de pesquisa peruana 'Jenaro Herrena' (Departamento de Loreto, Província de Requena, rio Ucayali) pelo cientista francês Francis Kahn.

A publicação da espécie foi feita na revista científica suiça Candollea (No.45) em 1990 [1].

Entretanto, seu nome científico, autoria e data de publicação poderiam ter sido outros, não fosse a personalidade forte e a visão taxonômica 'agregadora' (lumper) do primeiro pesquisador a encontrar indivíduos desta espécie no campo: Wessels Boer.

Wessels Boer (1936-?) foi um botânico holandês que atuou na América do Sul na década de 60, quando o Suriname ainda era uma colônia holandesa. Ele foi o primeiro estudioso a observar na prática que havia um 'excesso' de nomes científicos publicados para as palmeiras nativas das Américas. Ou seja, a diversidade real de palmeiras encontradas no campo era efetivamente inferior à quantidade de nomes científicos publicados.

Já na sua primeira obra sobre as palmeiras americanas, ('As palmeiras Indígenas do Suriname', 1965) [2], ele alertava que os gêneros Attalea (onde se incluem as conhecidas uricuri e jaci), Geonoma (ubim) e Bactris (os coquinhos marajás) eram 'intratáveis' e incompreensíveis se alguém tentasse estudá-las usando a literatura existente à época.

Corretamente, ele apontou que pesquisadores do passado, entre eles Martius (alemão), Barbosa Rodrigues (brasileiro), Liberty Bailey (americano) e principalmente Max Burret (alemão), haviam contribuído sobremaneira para a caótica situação da taxonomia das palmeiras da região.

Eram centenas de nomes na literatura que raramente podiam ser encontrados no campo. Muitas espécies haviam sido descritas com base em diferenças de tamanho, coloração de frutos, presença ou ausência de um ou outro tipo de indumento (pêlos, espinhos, etc).

A solução que Wessels Boer encontrou para resolver a questão do excesso de nomes foi, inicialmente, colocar como sinônimos de umas poucas espécies, dezenas de outros nomes de espécies cuja descrição publicada nas revistas e livros não permitia a identificação positiva de amostras botânicas enviadas para os herbários.

Para fazer essa junção (lumping) Wessels Boer consultou as amostras botânicas que haviam dado origem às novas espécies (material tipo) e, corretamente, preservou os nomes mais antigos.

Esse choque inicial deve ter tido profunda influência no resto da curta, mas influencial, carreira de Wessls Boer. Sua grande contribuição literária, a revisão do gênero Geonoma (1968) [3], é uma prova de tenacidade e dedicação poucas vezes vista na história da taxonomia das palmeiras americanas, considerando as condições de trabalho à época.

Por essa razão, quando ele decidiu se dedicar a descrever a flora de palmeiras da Venezuela, era de se esperar que muitas espécies novas que viesse eventualmente a encontrar durante seus trabalhos no campo fossem eventualmente classificadas no nível de variedade ou mesmo 'inseridas' dentro de espécies-complexos, ou seja, espécies muito variáveis.

E foi isso que aconteceu quando ele descobriu algumas palmeiras que tinham certa similaridade, mas não eram exatamente idênticas a qualquer uma das espécies do gênero Oenocarpus descritas até aquela época. Diante da situação, ele resolveu dar o nome Oenocarpus bacaba variedade parvus a sua nova descoberta.

Este nome foi inicialmente publicado em um artigo na revista Acta Botánica Venezuélica (1971) [4], como uma prévia para sua obra completa, 'Palmas Indigenas de Venezuela' [5], cujo manuscrito estava em fase final de elaboração.

A publicação da nova espécie - apenas o nome - sem a correspondente descrição botânica não validou o nome científico escolhido por Wessels Boer, o que só aconteceu em 1988, quando a revista Pittieria finalmente publicou um número especial dedicado ao manuscrito do botânico holandês.

A razão para a demora na publicação da obra se deu pelo fato de, em meados da década de 70, Wessels Boer ter abandonado por completo a botânica, ficando o manuscrito engavetado na Universidade de Mérida (Venezuela).

Ao final, imagina-se que a publicação saiu basicamente como estava no manuscrito original, pois as eventuais sugestões de mudanças feitas pelos revisores não puderam, obviamente, ser atendidas. Além disso, aquela era a primeira obra (até hoje única) a tratar de todas as palmeiras nativas da Venezuela.

Com a publicação da nova espécie de Wessels Boer no nível de variedade, taxonomicamente abriu-se a possibilidade de elevação da mesma ao nível de espécie já que, segundo as regras taxonômicas, um nome não tem prioridade fora do seu ranking.

Em outras palavras: a eventual transformação da Oenocarpus bacaba variedade parvus em espécie não implicaria na adoção do nome Oenocarpus parvus.

E isso efetivamente aconteceu em 1990, quando Francis Kahn publicou a espécie Oenocarpus balickii a partir de amostras que encontrou no Peru.

O nome 'Balickii' é uma homenagem ao grande pesquisador etnobotânico americano Michael J. Balick, que havia estudado Oenocarpus em sua dissertação de doutorado (1980) [6] e publicado um extenso trabalho sobre a sistemática do grupo em 1986 [7].

A bacaba-de-caranaí no Acre

Em território acreano, a bacaba-de-caranaí só tem sido encontrada no vale do Juruá, sempre em áreas de florestas primárias de terra firme - rara em áreas antropizadas -, ou em campinaranas, sobre solos muito arenosos.

As coletas botânicas da espécie feitas no Acre indicam que ela ocorre na região da Serra do Moa, cercanias de Mâncio Lima e de Cruzeiro do Sul. Nesta última, encontramos um indivíduo em um ramal conhecido como 'canela fina', praticamente dentro da cidade, em pequeno fragmento florestal onde contabilizamos quase 10 gêneros de palmeiras!

[As fotos aqui apresentadas foram feitas na altura do km 60 da BR-307, já em território amazonense, próximo do ramal para o rio Moa.]

No campo, a bacaba-de-caranaí pode ser diferenciada da bacabinha (Oenocarpus mapora) pelo seu hábito solitário, estipe mais robusto (maior diâmetro) e frutos menores. Do patauá (Oenocarpus bataua), ela difere pelo porte visivelmente inferior e as folhas com pinas (folíolos) irregulares e apontados em diferentes direções - em patauá as pinas são regularmente arranjadas ao longo da folha, formando um único plano.

É importante ressaltar que, sob o ponto de vista taxonômico, a bacaba de caranaí é muito mais aproximada da bacaba do amazonas (Oenocarpus bacaba) e da bacaba-de-leque (Oenocarpus distichus) - encontrada em Rondônia e no Brasil central0 - do que do patauá e da bacabinha nativos do Acre.

Além do Brasil (Acre, Amazonas e Rondônia), a bacaba-de-caranai ocorre no Peru, Colombia e Venezuela.

Referência bibliográficas citadas:

[1] Kahn, F. 1990. Las Palmeras del Arboretum Jenaro Herrera. Candollea 45 (1): 341-362.

[2] Wessels Boer, J. G. 1965. Flora of Suriname, vol. V, part. I. Palmae. E. Edited by J. Lanjouw. E. J. Brill, Leiden. 172 p.

[3] Wessels Boer, J. 1968. The geonomoid palms. Verh. Kon. Ned. Akad. Wetensch, Afd. Natuurk., Tweede Sect. ser 2, 58: 1-202.

[4] Wessels Boer, J. G. Clave descriptiva de las palmas Venezolanas. Acta Bot. Venez. 6:299-362. 1971.

[5] Wessels Boer, J. G. Palmas Indigenas de Venezuela. Pittieria 17: 1-332, 1988. Universidad de Los Andes-Merida-Venezuela.

[6] Balick, M.J. (1980b) The Biology and Economics of the Jessenia-Oenocarpus (Palmae) Complex, Ph.D. dissertation, Department of Biology, Harvard University, Cambridge.

[7] Balick, M. J. 1986. Systematics and Economic Botany of the Oenocarpus Jessenia (Palmae) Complex. Advances in Economic Botany 3. 140 pp.

'MEIO-DIPLOMA' UNIVERSITÁRIO

MEC enquadra ‘meios diplomas’: Universidades que misturam modalidades de cursos sofreram medidas judiciais

Isis Brum
O Estado de S. Paulo

O Ministério da Educação (MEC) prepara medidas judiciais contra universidades particulares que prejudicaram o currículo pedagógico de seus alunos por juntar cursos de graduação com sequenciais e por antecipar a pós-graduação lato sensu para antes do fim da formação regular de quatro ou cinco anos. Para a Secretaria de Ensino Superior (Sesu), órgão ligado ao MEC, essas instituições estão reduzindo o tempo de estudo dos universitários e lesando a formação superior.

A secretaria foi informada dessa prática pelo Jornal da Tarde, em reportagem publicada na semana passada, com o título “Meio diploma: ilusão na faculdade”. Na capital, a Uninove implementou o modelo há cerca de três anos e a Uniban o pôs em prática neste.

A Sesu está finalizando um parecer que condena a formação universitária intercalada por curso sequencial (para uma função e não para a profissão) com a graduação e ainda oferece a especialização simultânea.

“Essa formação integrada reduz o conteúdo. Os alunos estão recebendo esses diplomas e não estão cumprindo a carga horária, ou seja, há uma redução do estudo”, afirma a secretária da Sesu Maria Paula Dallari Bucci.

De acordo com ela, os cursos sequenciais, também chamados de formação específica e elaborados a fim de qualificar a mão de obra para o mercado de trabalho de maneira rápida, têm uma grade curricular específica, assim como a graduação possui outra e o mesmo ocorre com a pós. Para que os diplomas sejam validados pelo MEC, é preciso que as universidades particulares cumpram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e, sobretudo, respeitem a carga horária estipulada para cada curso de nível superior, seja de graduação (bacharelado, licenciatura e tecnólogo) ou diplomação superior (sequencial).

“Identificamos não um problema de legalidade (se podem ou não emitir certificados intermediários), mas pedagógico, educacional, que está reduzindo o conteúdo”, acrescenta Maria Paula.

Reunião extraordinária

Ainda hoje, a Sesu deverá encaminhar um documento para o Conselho Nacional de Educação (CNE), pedindo a revisão da portaria que permitiu à Uniban e à Uninove instituírem o curso de pós junto ao de graduação.

O presidente da Câmara de Educação Superior, Paulo Monteiro Vieira Braga Barone, disse que o órgão deverá discutir o tema em reunião extraordinária, que deve se realizar ainda este mês. O encontro dos conselheiros ocorre no início de todo mês.

A conclusão simultânea da graduação e da pós “não parece uma boa prática” para Barone. “No atual quadro, não é ilícito fazer isso, mas parece que houve um desvirtuamento da portaria, que precisará ser novamente discutida”, explica o presidente do órgão.

Barone afirmou que os conselheiros têm meios para derrubar as portarias ministeriais. “Se o entendimento for esse, elaboraremos um parecer sugerindo ao ministro que revogue a portaria”, disse Paulo Barone.

TIPOS DE FORMAÇÃO SUPERIOR

GRADUAÇÃO

>>Forma bacharel, licenciatura e tecnológo com carga horária mínima de 2.400 horas;
gradua para uma profissão; pode cursar pós lato sensu (especialização), mestrado
e doutorado

DIPLOMAÇÃO SUPERIOR

>>Sequencial de formação específica com carga mínima de 1.600 horas; certifica para uma função; pode cursar somente a pós lato sensu, mas não mestrado e doutorado

22 março 2010

Mozart's Requiem Mass in D Minor II - Dies Irae

HOMINÍDEOS ANDARAM ANTES DO QUE SE PENSAVAM

Analisando pegadas fósseis de hominídeos primitivos que viviam em árvores - encontradas em Laetoli, na Tanzânia (foto) -, cientistas descobrem evidências de que, há 3,6 milhões de anos, eles já caminhavam eretos sobre duas pernas

Passos quase humanos

Agência FAPESP – Há três milhões de anos, os ancestrais dos seres humanos ainda passavam grande parte de suas vidas nas árvores. Mas, de acordo com um novo estudo, é possível que naquela época eles já caminhassem como bípedes.

Segundo pesquisa coordenada por David Raichlen, professor da Faculdade de Antropologia da Universidade do Arizona (Estados Unidos), novas evidências experimentais indicam que hominídeos primitivos, há 3,6 milhões de anos, caminhavam com postura ereta e marcha a passos largos, de forma semelhante à dos humanos modernos.

A pesquisa, realizada com participação de cientistas do Lehman College, de Nova York, teve seus resultados publicados na edição desta segunda-feira (22/3) da PLoS One, revista da Public Library of Science (PLoS)

Há mais de 30 anos havia sido descoberto em Laetoli, na Tanzânia, um rastro de pegadas fósseis depositadas há 3,6 milhões de anos e preservadas em cinzas vulcânicas. A importância dessas pegadas para a evolução humana tem sido intensamente debatida desde então.

As pegadas, que mostravam clara evidência de bipedalismo – a habilidade para caminhar na posição vertical –, haviam sido produzidas, provavelmente, por indivíduos da única espécie bípede que vivia naquela área na época: os Australopithecus afarensis. Essa espécie inclui Lucy, um dos fósseis de hominídeos mais antigos encontrados até hoje e cujo esqueleto é o mais completo já conhecido.

Uma série de características dos quadris, pernas e costas desse grupo indica que os indivíduos teriam caminhado em duas pernas quando se encontravam no chão. Mas os dedos e artelhos curvados, assim como a posição das omoplatas, voltadas para cima, fornecem evidências sólidas de que Lucy e outros membros de sua espécie também deviam passar tempo considerável escalando árvores.

Essa morfologia é claramente distinta do gênero Homo, ao qual pertencem os humanos, que abandonou a vida arbórea há cerca de dois milhões de anos e, a partir daí, passou a ser irreversivelmente bípede.

Desde a descoberta das pegadas de Laetoli, cientistas vêm debatendo se os rastros indicam um modo de bipedalismo de passos largos, semelhante ao dos humanos modernos. Ou se indicam um tipo menos eficiente de bipedalismo, com um andar agachado, mais característicos dos chimpanzés, cujos joelhos e quadris permanecem dobrados quando eles caminham em duas pernas.

Raichlen e sua equipe planejaram o primeiro experimento biomecânico expressamente concebido para abordar a questão. No Laboratório de Captação de Movimentos da Universidade do Arizona, os cientistas construíram um rastro de areia sobre o qual filmaram indivíduos humanos caminhando.

Os voluntários caminharam normalmente, com a marcha humana ereta e, em seguida, caminharam imitando a marcha agachada dos chimpanzés. Modelos tridimensionais das pegadas foram coletados pelo antropólogo biológico Adam Gordon utilizando equipamentos de seu Laboratório de Morfologia Evolucionária dos Primatas na Universidade do Arizona.

Os cientistas examinaram a profundidade relativa das pegadas no calcanhar e nos dedos e descobriram que as profundidades são semelhantes quando feitas por uma pessoa andando com postura ereta.

Em contrapartida, as marcas deixadas pelos dedos eram muito mais profundas que as dos calcanhares quando as pegadas eram produzidas com a caminhada na postura agachada – resultado do ritmo de transferência do peso ao longo do comprimento do pé.

“Com base em análises prévias de esqueletos de Australopithecus afarensis, esperávamos que as pegadas de Laetoli fossem parecidas com as deixadas por alguém andando com joelhos e quadris dobrados, como fazem os chimpanzés. Mas, para nossa surpresa, as pegadas de Laetoli coincidem completamente com o alinhamento das pegadas deixadas pela marcha típica dos humanos modernos”, disse Raichlen.

As pegadas fósseis de Laetoli preservam uma profundidade notavelmente homogênea entre o calcanhar e os dedos, como a dos humanos modernos, segundo o estudo. “Essa forma de andar semelhante à humana é de uma eficiência energética incrível, sugerindo que a redução dos custos energéticos foram muito importantes para a evolução do bipedalismo antes da origem do próprio gênero Homo”, disse o cientista.

Se as pegadas de Laetoli foram feitas pela espécie de Lucy, como a maior parte dos cientistas acredita, esses resultados experimentais têm importantes implicações para a cronologia dos eventos evolucionários.

“O que é mais fascinante sobre o estudo é que ele sugere que, na época em que nossos ancestrais tinham uma anatomia bem preparada para passar a maior parte do tempo nas árvores, eles já haviam desenvolvido um modo de bipedalismo altamente eficiente”, disse Gordon.

“Os registros fósseis indicam que nossos ancestrais, por pelo menos um milhão de anos a partir das pegadas de Laetoli, não aderiram integralmente à passagem das árvores para a caminhada no chão. O fato de que animais que viviam parcialmente nas árvores, como Lucy, tinham um estilo de marcha de passos largos tão moderno caracteriza um importante testemunho da importância da eficiência energética na passagem para o bipedalismo”, afirmou.

O artigo Laetoli Footprints Preserve Earliest Direct Evidence of Human-like Bipedal Biomechanics, de David Raichlen e outros, pode ser lido por assinantes da PLoS ONE em http://dx.plos.org.

(Foto: Universidade de Stanford)