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22 novembro 2010

FANTASMAS NAS FLORESTAS ACREANAS

Muitas plantas nas florestas acreanas ainda não perceberam que seus predadores ou dispersores desapareceram há milhares de anos. Na ausência desses, essas plantas representam verdadeiros fósseis vivos, inutilmente aguardando a chegada de fantasmas.

Alceu Ranzi
Instituto Histórico e Geográfico do Acre

Evandro Ferreira
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia-INPA

[Espinhos do tronco da palmeira murmuru Astrocaryum ulei, nas cercanias da cidade de Sena Madureira-AC]

Quando caminhamos pelos varadouros e estradas de seringa das florestas acreanas não percebemos, mas numerosos fantasmas nos espreitam. Se observarmos bem, esses fantasmas se materializam na forma de características incomuns de algumas plantas e pela ocorrência de certos frutos que não conseguimos explicar à luz dos seus atuais possíveis predadores ou dispersores.

O exemplo mais representativo dessa situação são os espinhos da palmeira conhecida popularmente como murmuru (Astrocaryum ulei), que podem atingir até 50 cm de comprimento.

Quem já viu uma dessas palmeiras e parou para observar seus espinhos avantajados certamente deve ter se perguntado:

- Para que servem estes espinhos? Contra que tipo de animal esta palmeira irá usá-los?

O murmuru faz parte de um grupo que compreende 16 espécies de palmeiras muito similares morfologicamente, todas com espinhos avantajados, das quais 10 estão amplamente distribuídas no oeste da Amazônia, especialmente no Acre, sul do Amazonas e Peru.

A maior parte dessa região era até 10 mil anos atrás um extenso cerrado habitado por abundante e diversa megafauna terrestre representada pelas preguiças gigantes, mastodontes, gliptodontes e toxodontes, todos animais com mais de 1 tonelada de peso. Na atualidade, o maior herbívoro existente nesta região é a anta (Tapirus terrestris), que mal passa de 1 m de altura e pesa no máximo 250 kg.

Outra planta contemporânea, a coité-de-macaco ou cuieira-da-mata (Couroupita guianensis), uma árvore de grande porte da mesma família da castanha do Brasil que pode atingir até 45 m de altura, possui frutos com até 24 cm de diâmetro. Os nossos seringueiros também são castanheiros, mas não colhem o coité-de-macaco, colhem apenas a castanha. Os frutos da castanha tem como dispersor e predador a cutia (Dasyprocta spp.), que abre o ouriço extremamente duro, come algumas sementes e enterra as outras. As sementes esquecidas pelas cotias mais tarde irão germinar, garantindo a perpetuação da espécie. Para o coité-de-macaco restam apenas os fantasmas. Falta a cutia da Couropita.

[Frutos da palmeira cocão Attalea tessmannii colhidos ao longo da BR-364 entre Cruzeiro do Sul e Tarauacá-Acre]

Mais um exemplo é o cocão (Attalea tessmannii), uma palmeira de grande porte que pode atingir mais de 20 m de altura e que se parece muito com a palmeira jaci (Attalea butyraceae). Aparentemente, a fauna atual não comporta um dispersor do frutos do cocão, os maiores dentre todos os frutos de palmeiras nativas do Acre. Por isso, os frutos da espécie quando amadurecem e caem no solo, apodrecem, são consumidos pela larva do bicho-do-coco ou são triturados e comidos pelos queixadas (Tayassu tacaju), perdendo a capacidade de germinar. Os bandos de queixadas não são dispersores, são predadores. O desaparecimento do dispersor primitivo do cocão talvez explique a sua atual distribuição natural, restrita ao vale do Rio Juruá, no Acre, e regiões adjacentes do outro lado da fronteira, no Peru.

[Frutos do coité Crescentia cujete no rio Macauaã, Acre]

Podemos citar também o coité, conhecida pelos cientistas como Crescentia cujete. O fruto do coité, depois de seco e serrado em duas partes, é usado como cuia, recipiente, ou mesmo prato, especialmente para saborear o tacacá. O coité é uma espécie originária da América do Sul ou América Central, e foi domesticado há muito tempo, não se sabendo com certeza aonde. Mesmo assim é importante notar que não se encontra na atualidade um animal que se interesse pelo alimento fornecido pelo enorme fruto do coité. Muito menos se entende porque uma árvore que mal passa dos 10 m de altura precisa gastar tanta energia para produzir dezenas de frutos que muitas vezes medem mais de 40 cm de diâmetro. Um mistério a ser resolvido pela identificação dos fantasmas.

O murmuru, a coité-de-macaco, o cocão e o coité são exemplos de anacronismos. Essas plantas não estão em sincronia com os seus dispersores. São plantas adaptadas para animais extintos ou fantasmas. As plantas continuam agindo como se esses animais ainda estivessem presentes no ambiente. É uma memória genética que, passados mais de 10 mil anos, ainda não se apagou.

[Preguiça gigante Eremotherium. Desenho: André Houot]

A pré-história e a história contemporânea são latentes no Acre pela existência de plantas anacrônicas e fósseis da megafauna extinta. Provavelmente muitas plantas das florestas acreanas ainda não perceberam que seus predadores ou dispersores desapareceram. E na ausência da megafauna, essas plantas representam verdadeiros fósseis vivos, inutilmente aguardando a chegada de fantasmas.

No Laboratório de Paleontologia da UFAC, pode-se averiguar a antiga presença desses fantasmas, pelos ossos fósseis de seus crânios, mandíbulas e dentes.

O paleontólogo é o profissional que consegue dar vida a animais extintos. A união dos saberes dos paleontólogos com a de outros especialistas poderá auxiliar no entendimento da biologia de algumas plantas do Acre, que representam verdadeiros enigmas de sobrevivência.

Para saber mais:

- Barlow, C. 2000. The Ghost of Evolution, Basic Books, New York.
- Kahn, F. & B. Millán. 1992. Astrocaryum (Palmae) in Amazonia. A preliminary treatment. Bull. Inst. fr. etud. Andines 21: 459-531.
- Ranzi, A. 2000. Paleoecologia da Amazônia. UFSC/UFAC – Florianópolis/Rio Branco.

18 novembro 2010

RAIMUNDO SARAIVA. UMA PERDA IRREPARÁVEL PARA O ACRE

Evandro Ferreira
Blog Ambiente Acreano

Poucos no Acre ouviram falar desse acreano nascido no alto rio Tarauacá. Mas sua morte, ocorrida na noite de ontem (17/11/2010), é um dos mais duros golpes sofridos pela ciência acreana.

Embora possuisse educação formal muito precária, Raimundo Saraiva era um, entre três "mateiros" acreanos com conhecimento botânico de alto nível.

Não, Raimundo Saraiva não era um mateiro responsável pela abertura de trilhas na floresta, daqueles que guiam as pessoas mata adentro. Muito menos um 'mateiro', como muitos que temos no Acre, que vivem a nomear plantas na floresta utilizando como marca registrada o que chamamos popularmente de 'chute'.

Raimundo Saraiva, que trabalhava como técnico de campo da Funtac, era o que se convencionou a chamar nestes últimos anos, um 'parataxonomista'. Capaz de não apenas identificar as plantas por seus nomes vulgares, mas também, na maioria dos casos, indicar a família botânica, gênero, e algumas vezes, o nome científico.

O conhecimento dos nomes vulgares das plantas ele forjou durante o tempo que viveu nos seringais do rio Tarauacá. Vindo para Rio Branco com idade relativamente avançada - mais de 30 anos -, foi incorporado a equipe de coletas botâncias do Herbário do Parque Zoobotânico e, durante numerosas excursões de campo com especialistas botânicos de renome mundial (do Brasil, Europa e EUA), Raimundo incorporou com facilidade o conhecimento técnico sobre nomenclatura botânica.

Parataxonomistas como Raimundo Saraiva não são formados em bancos de escolas. São pessoas espéciais, com um dom fora do comum para identificar as plantas apenas pelo 'jeito' delas. Uma rápida olhada para o tronco, casca e copa, mesmo à distância, era suficiente para confirmar a identificação botânica. Pessoas como Raimundo Saraiva não precisam de livros e tratados de botânica. Alguns nem mesmo precisam saber ler. Sua memória fotográfica resolve tudo.

A formação de um parataxonomista como Raimundo Saraiva não é questão de meses ou anos. Mas de uma vida. Depende também das oportunidades de aprender com os grandes especialistas botânicos - que geralmente estudam apenas um grupo restrito de plantas. Pode-se dizer que o conhecimento de pessoas como Raimundo Saraiva é uma colagem do conhecimento de diversos especialistas botânicos. Por isso ele era tão bom no conhecimento da grande diversidade da flora de plantas acreanas.

Sem modéstia, afirmo que um percentual muito elevado, talvez mais de 50%, dos inventários florestais usados para a elaboração de planos de manejo desenvolvidos no Acre apresentam graves erros de identificação botânica das espécies exploradas - muitos propositais. Tudo porque os 'empresários' responsáveis por estes planos de manejo preferem pagar R$ 30-40/dia por um mateiro chutador, incapaz de identificar espécies madeireiras mais raras ou morofologicamente variáveis (angelins, faveiras, tauaris, etc). Não precisa dizer que a maioria desses mateiros chutadores não tem a menor idéia do que vem a ser família ou gênero botânico. O 'chute' dos nomes científicos fica a cargo do engenheiro florestal que assina o plano de manejo. Que por sinal fazem isso em escritório, consultando listas de nomes na internet e em um ou outro livro.

Isso acontece porque pessoas como Raimundo Saraiva são pagas na base de R$ 150-200/dia, livres de despesas para fazer trabalhos de identificação botânica. É óbvio que os 'predadores' do estoque madeireiro do Acre jamais se disporão a pagar tal monta - ainda mais para alguém quase incapaz de escrever - para garantir que seus inventários florestais tenham a qualidade científica desejável. Isso acontece porque os técnicos que fiscalizam esses planos de manejo são incapazes de identificar a maioria esmagadora das plantas marcadas para serem exploradas.

Agora no Acre restam apenas duas pessoas do quilate de Raimundo Saraiva. Nenhum dos dois tem chance de ser admito em qualquer órgão público de pesquisa que lhes pague um salário decente e seguro. Eles mal sabem ler e escrever.

O futuro da botânica acreana - e por tabela de todas as ciências que dependem dela - está em risco. Logo, logo, teremos que 'importar' parataxonomistas do INPA em Manaus para auxiliar os inventários florestais e florísticos sérios realizados no Acre.

Descanse em paz Raimundo Saraiva.

17 novembro 2010

NOSSA HORA LEGAL DE VOLTA EM JANEIRO DE 2011

Evandro Ferreira
Blog Ambiente Acreano

Todo mundo sabe: "poder demais embriaga e desorienta aqueles que acham que tudo podem".

Em 28 de junho de 2008, o blogueiro Altino Machado publicou uma pequena nota mostrando exatamente isso.

Em sua nota, Altino Machado reproduziu um comentário do marqueteiro pernambucano Gilberto Braga, sócio da Cia. de Selva, a agência que detém as contas do governo do Acre e da prefeitura de Rio Branco, em que ele afirmava com convicção que:

- Quem quer plebiscito para mudança do fuso horário terá que passar mais 95 anos esperando. Foi esse o tempo que o horário passou errado. Isso é democracia.

Para falar o que falou, o tal marqueteiro seguramente 'achava' que o povo acreano não deveria ter o direito de ser ouvido sobre a mudança. À época, referendo ou qualquer tipo de consulta popular era, na opinião do aliado do grupo político que comanda o Acre, algo totalmente fora de questão.

Pois bem. Não apenas o povo foi ouvido, como também contrariou a 'vontade' dos que acham que são os donos do nosso destino - tempo incluso.

Agora, com a definição da volta do 'nosso' horário, eu é que digo:

- O Acre e seu povo não pertencem ou são joguetes de qualquer um (muito menos alguém que só está aqui por pura conveniência).

Aproveito para concluir esta post com um comentário de Altino Machado, que ao final de sua nota, afirmou com propriedade e convicção:

- Resigna-me saber que o marqueteiro vai embora do Acre na "hora" que a mamata acabar. E ela não vai demorar 95 anos.

Alguém ai duvida que a volta do marqueteiro pernambucano para sua terra natal ainda vai demorar a acontecer?

Ilustração: Blog do Altino Machado

15 novembro 2010

NOVOS RUMOS PARA A CULTURA ACREANA

UM PITACO SEM SER CHAMADA

Fátima Almeida*

As eleições já passaram e agora vem o Natal e o Ano Novo. Brasileiro é assim, acreano é assim. De minha parte, aguardo as nomeações para saber o que vai mudar no time dos titulares do governo do Acre. A parte a qual sou mais chegada, no coração, é a cultura. Estou otimista depois de algo que um passarinho me contou sobre uma movimentação nos bastidores para que Francis Mary Alves de Lima assuma a presidência da Fundação Elias Mansur.

Acredito que o próprio Elias Mansour, que já está do outro lado, ficará satisfeito porque nós costumávamos ir tomar cafezinho no final da tarde com ele, em seu gabinete, onde tínhamos entrada mais do que franca sem o menor protocolo. E quando não tínhamos o que fazer, após o tradicional encontro na praça.

Além do mais, a Francis Mary é uma das dirigentes do PT que não subiu no salto, como se diz, não mudou o modo de tratar as pessoas, sem contar que é competente e que o Procon do Acre, o qual ela dirige, é um lugar onde somos tratados com amabilidade, eficiência e rapidez. Ela permanece em contato com as comunidades, trabalhando com afinco para estender o exercício da cidadania ao maior número de pessoas.

De mais a mais, a trajetória dela no meio artístico-cultural, é do conhecimento de todos, desde meados dos anos 70, como poeta, co-autora de peças teatrais, atriz e jornalista, sempre em defesa do meio ambiente, dos direitos imemoriais dos povos indígenas, da liberdade de pensamento e expressão. É do meio, conhece a todos e apresenta uma longa jornada.

Nada tenho contra o atual presidente, com quem nunca pude sequer conversar. Nas raras vezes em que tentei isso fui tratada de forma seca, curta e grossa, pela pessoa que ocupa o cargo de chefe de gabinete.

A primeira vez, quando estava tentando publicar o livro do Joseh Alexandre, do PT, da CUT, assassinado brutalmente, cujos poemas vieram às minhas mãos e cujo trabalho de organização da obra para publicação me consumiu as horas vagas por um par de meses. A segunda vez, quando, em cadeira de rodas, devido a uma fratura na perna, precisava saber das condições de acesso ao Teatro Plácido porque queria participar da audiência sobre a nova função do Casarão, em reforma, e queria, que petulância, um carro com motorista que me levasse e trouxesse para casa. A mesma, curta e seca, me mandou ligar para outro setor que por sua vez, não sabia nada a respeito. Bom, fiquei em casa olhando para o tempo, sem incomodar as pessoas mais próximas que estavam ocupadas.

Mesmo assim nunca deixei de colaborar com a Fundação Elas Mansour na qualidade de parecerista de patrimônio histórico, sempre que me convidaram. Nunca procurei privilégios, mas tenho várias pastas com recortes de jornais que atestam a minha participação do meio artístico de Rio Branco e que não é de se desprezar. Acredito que eu mereceria, por parte daquela senhora, chefe de gabinete, um mínimo de atenção.

Não tenho, em absoluto, a menor intenção de atuar na área de forma institucionalizada, nem mesmo de modo informal, mas gostaria de ser tratada com mais respeito à minha história de vida, porque queiram ou não, eu sou uma referência no meio cultural acreano e, por isso, fico contente com a possibilidade de que o novo gestor ou a gestora seja alguém com o perfil de Francis Mary. Ela é tranqüila, consciente, comprometida, com trânsito em todas as gerações, com boa memória e, sobretudo, uma boa amiga de todos nós, dos avessos e dos direitos. Ademais, é uma boa acreana, honesta, com horizonte bem aberto.

*Fátima Almeida é historiadora

Artigo originalmente publicado no Blog do Altino Machado

10 novembro 2010

DESPARTIDARIZANDO A CULTURA ACREANA

“SEM RECUAR... SEM CAIR... SEM TEMER...”

Uma pergunta pertinente: será que o novo governo que chega ao poder irá continuar a adotar políticas culturais que não contemplam a ampla diversidade do movimento cultural local? Não é chegada a hora da cultura acreana ser despartidarizada?

Heloy de Castro*

Passado o susto de advertência da população, no pleito eleitoral no Acre, o futuro governo acreano promete, segundo a imprensa, nomes do secretariado pra já. O atual que sai comemora o Dia Nacional da Cultura sancionando a lei do Sistema Estadual de Cultura, mas, no todo, já passam 12 anos de PT no poder e a cultura no Acre, de fato, não tem muito o que comemorar. Mudou alguma coisa mesmo? Que mudança? A pergunta se faz resposta.

Repetindo os velhos vícios da política local, em que predomina uma mentalidade não só imune como hostil a verdadeiras mudanças, podemos vislumbrar mais um quadriênio em que a cultura terá menos ainda o que comemorar, pois se não houve promessas de campanha, haverá o que fazer? Ou melhor: o novo governo, em estado de descompromisso pré e pós eleitoral, fará o que bem entender?

Sem ouvir a comunidade cultural, como deveria, antes e, principalmente, depois do pleito, ignorando que é constitucional a elaboração do plano plurianual da cultura pelo Conselho, o governo seguirá optando por opiniões próprias e autoritárias, por políticas alheias, inadequadas e ilegais, quanto ao que o setor aspira? Seguirá, o governo, com ouvidos moucos?

O Conselho Estadual de Cultura, para melhor contribuir com a idéia de verdadeira participação popular na administração da cultura, criou, em seu Regimento, o poder de indicar, em lista tríplice, nomes para o comando da Fundação Estadual de Cultura. Há quatro anos, a lista tríplice endereçada à atual gestão, após processo democrático de escolha, recebeu, como resposta, a indiferença. No atual momento, a Presidência do CONCULTURA, infelizmente até agora não se manifestou sobre o processo de indicação da lista tríplice, o que esperamos seja feito imediatamente, para que o futuro governo não diga que não sabia da opinião da área cultural.

Nem as políticas de cultura, nem seus gestores devem ser impostos. Agir assim é ferir os princípios constitucionais da democracia, da participação e da legalidade, pois a participação social nas gestões públicas já é imperativo constitucional e legal. A opção pela imposição traz toda sorte de malefícios à gestão, a começar pela indicação aleatória e sem critério do comando, até a consecução de eventos caros e sem resultados efetivamente sociais e culturais...

De tudo, além do alto custo público e do precioso tempo que se perde, há o fomento à mediocridade pelo qual se vê grande parcela da população incapaz da leitura, seja de livros ou da própria cultura. Vê-se em tal postura gestora um crime de responsabilidade geracional, o qual tem condenado um povo à eterna condição política subalterna e de quase nenhuma auto estima cultural.

O Conselho de Cultura tem sofrido desse mal também. A grande evasão das boas mentes ali verificadas bem se explica: ninguém quer participar de um conselho de faz-de-conta. Estão ali cidadãos que exigem o respeito a que tem direito. É lamentável que ainda se criem leis para não serem cumpridas e que não seja garantido seu cumprimento por quem deveria.

A classe artística, sem visibilidade ou reconhecimento, de modo geral, vai se tornando descrente e indiferente às promessas e discursos que se acumulam sem maiores resultados. Não desejamos que os que persistem no Conselho sejam derrotados pelo cansaço e que só resistam os que não acreditam (apenas se aproveitam pessoalmente da situação), os que têm pouca noção do processo e os oportunistas que ao fim não têm legitimidade representativa.

Com leis, eventos e silêncios nosso estado é um prodígio da gestão cultural e educacional democráticas: enquanto o governo propaga a noticia de que possui a melhor educação do país, inexiste em seus quadros licenciados em artes, nem sala de aula voltados para a arte-educação. Sem falar que todos os seus espaços culturais como galerias, teatros, bibliotecas, museus, rádios e TVs educativas são geridos sem a participação e controle popular e sem os especialistas da área. Enfim, tem uma série de outras coisas inexplicáveis que pode tudo dizer, menos que há efetivamente políticas culturais e educacionais de qualidade.

Diante desse quadro, que exige firme posicionamento social mais do que um silencio conivente, nós produtores culturais, que abaixo assinam o presente manifesto, exigimos do governo eleito que não tenha medo da democracia e que abra as portas do poder para a participação popular na área cultural, sem recuar a legislação da cultura, sem cair em gestão participativa faz-de-contas, e sem temer os artistas e a cultura

Cleber Moura
Lenine Alencar
Dinho Gonsalves
Regina Cláudia
João Veras
Clenilson Batista
Dalmir Ferreira
Laélia Rodrigues
Heloy de Castro
Écio Rogério
Cia. Visse e Versa

Outros virão......

*Heloy é cantor e compositor.

09 novembro 2010

SUINDARA: A BELEZA E O OLHAR HUMANO DAS CRÔNICAS DE LEILA JALUL

Isaac Melo
Blog Alma Acreana


Na crônica, uma coisa é o acontecer, outra coisa é escrever aquilo que aconteceu. A narrativa vai ganhando cores próprias, conforme o olhar e a perspicácia com que cada um narra o que viu ou ouviu. Fato ou fantasia. Cronistas como Cony e Rubem Braga estão entre aqueles que considero geniais nesse gênero.

Ao voltar meu faro literário para o Acre, como alguém que mais ama nossas letras do que a compreende, meus pensamentos se voltam incontestes para Florentina Esteves, o vulto literário feminino, a meu ver, mais expressivo do Acre. O Empate é um primor literário. Suas crônicas (Enredos da Memória e Direito & Avesso) são um capítulo a parte nas letras acreanas. Outra figura imponente é Jorge Kalume. Não é a quantidade que denota a qualidade, demonstra seu Crônicas do Acre Antigo. E nessa história há que figurar Leila Jalul, em Suindara, com suas “doces lembranças que ninguém pode esquecer de lembrar”.

Suindara é bem acreano com a autora. Não é rebuscado de eruditismo. O texto flui como as águas do igarapé que buscam o rio, ora calmas, ora agitadas. Mas, no fundo, o que vemos é uma linguagem que segue a vida, coloquial, vital. E o texto sai como uma conversa entre amigos. E o que poderia parecer prosaico, revela-se como uma notável capacidade literária.

Difícil ficar impassível às suas crônicas. Assim em Barrancas e Lembranças vemos a história do jovem Pelé, que amava sua mãe e sua irmã e era apaixonado por folhas. A morte da mãe e as circunstâncias da vida o levaram a Manaus. Em Manaus, fez-se assassino. Todavia, há o olhar humano da cronista, sem fazer juízo de valor: “A lembrança e o carinho por ele não afundaram no mergulho do rio, nem diante da foto que vi na folha do jornal. Tirante os olhos, era a de um homicida cruel, que bem poderia ter sido um botânico”.

Em Chiquinha Coralina Moreira a autora, com muita competência e propriedade, traça um paralelo entre a poetisa goiana Cora Coralina e Dona Chiquinha Moreira, uma benzendeira acreana. A primeira, “de versos puros, em feitio de oração; a segunda, de orações puras, em feitio de poesia”. E arrematava: “Cora nos legou a riqueza de seus poemas; Chiquinha, um rastro de luz. Juntas, a beleza do ser simples e a importância de um lenitivo”. Nessa crônica, percebe-se a argúcia do pensamento de Jalul, que extrapola os limites do regionalismo e se abre numa perspectiva universal.

A crítica sutil, embora mordaz, aparece em diversos momentos como em Menino Bonito, que deixa entrever como o Estado (Ditadura) se utiliza de certos recursos para exercer seu poder e subjugar os “fracos”. Assim o menino que era “bonito, forte e burro, ingredientes necessários para obedecer” alistou-se na Base Aérea de Belém. Lá foi ensinado a matar: “ora, se era possível matar a si próprio, por que não a outro? E a outro matou”. E o jovem dócil e amoroso metamorfoseia-se num ser estúpido e brutalizado. Desse modo, registra a pena da cronista: “Menino gordo, burro e adestrado, saiu do tempo e dos templos da redentora outro menino: mais obeso, mais burro, mais alienado”. Embora no fundo daquele ser embrutescido ainda subsistisse um filete de ternura.

Algumas crônicas tratam de questõe sérias, com toda a seriedade que pode assumir o riso. Sim, pois em muitos dos textos o humor é mais para corroborar seu pensamento do que para deleite literário. Embora o contrário também seja válido. Entre os inúmeros exemplos, as crônicas: Minhas Férias e A Francesinha.

Suindara, a nossa rasga-mortalha, ave tão temida pelos acreanos, por se acreditar que seu canto prenuncia agouros. Mas desde há muito a coruja é tida como o símbolo da filosofia, da sabedoria, pela sua notável capacidade de ter uma visão de 360 graus. Aí está porque Leila Jalul a escolheu para título de sua obra. Suas crônicas são um canto, a encantar aqueles que a ouvem, numa notável capacidade de ver e ir além daquilo a que estamos comumente fadados a enxergar e a ir.

Nas páginas de Suindara estão excertos da memória acreana, de um passado não muito distante, e que, de todo, ainda não passou. São passagens particulares da autora e “passagens de outros entes que sequer souberam que passaram”. Vivi vivendo e escrevo o que vivi, é a singularidade da cronista. Um Estado que têm escritores de excepcionais qualidades, pode regozijar-se com uma cronista e poetisa que está a sua altura, como Leila Jalul, a engrandecer nossas letras.